Daniel carregou pelo resto da vida a humilhação que sofrera em um colégio da capital pernambucana.
Urariano Mota (texto)
Silvino (arte)
Na década de 1960, o bullying ainda não tinha esse nome. Mas ocorria, como ainda ocorre. O que eu narro a seguir é um trecho do conto Daniel, nome próximo de um amigo que carregou pelo resto da vida a humilhação que sofrera em um colégio do Recife.
Da turma, Daniel era o mais gordo. Ainda que sob protesto, ele crescera pelos lados, elastecendo um círculo de carnes. Em seu rosto largo destacavam-se sobrancelhas peludas, que se uniam simetricamente num ponto de inflexão, ficando a sobrancelha esquerda e a sobrancelha direita ligadas como asas de um urubu visto à distância. Essa união o incomodava. Se ele tivesse ultrapassado aquele momento crítico em que rapazinhos e mocinhas se entreolham, em que as mudanças no corpo, no rosto, são mudanças de revelação, Daniel teria sobrevivido àqueles elos de siamesas. Mas as sobrancelhas para Daniel não eram propriamente uma revelação, porque há muito vinham sendo anunciadas. Se ele pudesse, naquela quadra da sua vida, teria feito uma cirurgia. Uma nova face, de quaisquer outras sobrancelhas, finas, ralas, densas, espessas, não importava, desde que fossem gêmeas cada qual a seu canto. Ele se sentia, ou melhor, os meninos e meninas faziam-no sentir-se um rapaz anormal, em razão de se acompanhar do que achavam anormais enfeites sobre a testa. E enfeites muito salientes, cerrados, que se apresentavam à frente, antes que ele dissesse “eu sou Daniel”. Enfeites incapazes de disfarce.
Em outra pessoa aquelas sobrancelhas viriam a ser um distintivo de elegância, mas em Daniel … Ele era gordo, carregava a fama de ser um quase idiota. Quem é tido como insignificante já traz em si a sua zombaria. O grupo de alunos se tornava coeso, punha-se mais turma na eleição de Daniel para o divertimento. Que julgavam tão inocente:
– Daniel, tira essa máscara!
E num requinte de inocência, um do grupo se virava para as mocinhas:
– Quem quer, quem quer um quilo das sobrancelhas de Daniel?
Ele não se escondia, não descia para um buraco, porque era impossível sumir por entre os sinais do seu rosto. A classe toda numa gargalhada geral estourava.
As meninas, a princípio tímidas, terminaram por aderir a esse tipo de malhação. Porque era malhado, Daniel se transformava no contato entre moças e rapazes, que antes mal se relacionavam. A cada zombaria as mocinhas dobravam a risada. Ruborizavam-se. Os rapazes, sentindo a terra fértil, acercavam-se mais estreitamente. Um banquete…
Se ele fosse magro, se não mangassem dele, se ao menos tivesse sobrancelhas de gente, como era bom. Suas calças não guardavam vinco. A camisa não lhe descia, verticalmente, por entre as calças. Ela apenas era puxada, repuxada, naquela barriga.
Um belo dia, Daniel entrou no colégio de sobrancelhas raspadas. Ou melhor, ele amputou o corpo, o ponto onde se uniam as duas asas do pássaro. Ou melhor, pensando em amputar o corpo, inabilmente foi mais longe, amputou também pedaços à esquerda e à direita das asas, fez sumir os pedaços que a natureza fazia cair rumo ao encontro. Melhor, no que sobrou, diminuiu o volume, a espessura dos pelos, ou das plumas. Melhor, finalmente, tirou plumas abaixo e acima das articulações, reduzindo-as a finas linhas.
A cirurgia deu nascimento a dois pontos de interrogação deitados, quase a dois acentos circunflexos incompletos, sem acomodação.
O turno da tarde, o colégio inteiro se levantou. Daniel não conseguia sentar-se em uma cadeira. Ficava rodando, com sua cara gorda de palhaço, por entre a turba excitada. “Mulherzinha, mulherzinha”, vinham em gritos agudos, vaias, risadas, de início uma passarada de praga, depois uma massa compacta, “Mulherzinha!”. Estrondavam. Num gesto reflexo, Daniel punha as mãos sobre o rosto, protegia a cabeça como um ser em queda, como um suicida em arrependimento tardio que se lançou do alto de um arranha-céu.
Não se pode dizer que pensava, mas seu arrependimento tardio parecia tão somente falar “em que deu, Daniel, em que deu o teu sonho impossível de te fazer aceito”. Ao que outra voz respondia, na mesma escuridão, por entre seu corpo aos soluços, “agora o teu sonho se vai, Daniel. Antes houvesses feito do que era impossível uma hemorragia”.
Com solenidade, os professores arrastaram o anormal para a secretaria. Uma procissão de meninos os seguiu.
Na secretaria, diante daquele rapazinho cabisbaixo, dona Augusta mandou que ele erguesse o rosto. A medo obedeceu: tinha o rosto úmido, inchado, com as inscrições esborrachadas na testa. A diretora então, em seu natural prosaico, achou por bem lhe ajeitar as interrogações deitadas sobre os olhos, enfeixando-as numa única interrogação:
– Por que você nunca usou um boné, Daniel?
E assinou a sua expulsão.