O exemplo de uma aponta para o futuro, e o da outra para um passado que um dia será superado.
Vandeck Santiago (texto)
Alcione Ferreira/DP (foto)
O Brasil encerra a semana com duas histórias que revelam o que o país tem de pior e de melhor. Uma das histórias aconteceu em Jales, interior de São Paulo. Uma garota que vendia sorvetes empurrava o carrinho quando duas moças passaram ao lado, de moto, e zombaram dela. A sorveteira — Bruna Atanazio, de 22 anos — disse que num primeiro momento ficou “envergonhada” e com vontade de voltar “correndo” para casa. Em vez disso acabou decidindo por continuar na rua, vendendo os sorvetes e picolés, tarefa na qual se ocupa já há dois anos. Por uma rede social, em um post que viralizou, ela fez o seu desabafo, dirigindo-se às meninas que debocharam dela: “Sejam vocês quem forem, gostaria de dizer que no fim do dia eu tinha meus 74 reais no bolso, (dinheiro) muito suado e honesto. Quem não precisa de dinheiro tem vergonha de trabalhar como eu traba -lho, de fazer o que eu faço””.
É comovente ver uma jovem orgulhosa de ganhar 74 reais, ao fim de um dia empurrando um carrinho de sorvetes para lá e para cá. Mais comovente ainda o valor se torna quando nos detemos na segunda história: em Brasília a ministra Luislinda Valois, dos Direitos Humanos, encaminhou ao governo um requerimento de 207 páginas argumentando que fazia jus aos vencimentos de R$ 61,4 mil mensais, brutos. No argumento de 207 páginas ela reivindica a acumulação do seu salário de ministra, que é de R$ 30.934,70, com o seu original, de desembargadora aposentada da Bahia, que é de R$ 30.471,10. Como isso não bastasse, ela ainda comparou seu caso ao de trabalho escravo, dizendo que a situação “sem sombra de dúvidas, se assemelha ao trabalho escravo, o que também é rejeitado, peremptoriamente, pela legislação brasileira desde os idos de 1888 com a Lei da Abolição da Escravatura”.
No dia seguinte, em entrevista ao Estadão, que publicou com exclusividade a história, ela tornou a falar sobre o assunto: “Todo mundo sabe que quem trabalha sem receber é escravo”. E quanto mais falou, mais piorou a situação. Em entrevista à Rádio Gaúcha: “O Brasil está sendo justo comigo? Como é que eu vou comer? Como é que vou beber? Como é que eu vou calçar?”. E depois, para a CBN, ao falar que o cargo a obriga a “se apresentar trajada dignamente”. “É cabelo, é maquiagem, é perfume, é roupa, é sapato, é alimentação. Se eu não me alimentar, eu vou adoecer e aí vou dar trabalho para o Estado”.
Não vou falar na estranheza em constatar que pessoas assim ocupem cargos tão importantes na República (ela é do PSDB), porque a gente sabe como são essas coisas, e que não são exclusivas desse ou daquele governo. Também não vou falar na reivindicação para ter direito a R$ 61,4 mil mensais, brutos, o que significaria contornar a regra constitucional, que determina que nenhum servidor pode ganhar mais que os subsídios de ministros do Supremo (R$ 33.763,00, o chamado “teto constitucional”, que é o que a ministra recebe). Mas a mim surpreendeu que alguém que foi desembargadora e hoje é ministra utilize argumentos tão rasos para justificar-se. Além da menção a “trabalho escravo”, ainda essas outras frases no estilo “é cabelo, é maquiagem, é perfume…”. Surpreendeu também que, depois de ter escrito 207 páginas defendendo o seu direito a acumular os vencimentos, ela tenha, ontem, desistido do pedido, em razão da repercussão negativa, e optado por permanecer no cargo.
Em nenhuma sociedade do mundo uma ministra ganha a mesma coisa que uma sorveteira — e não é essa comparação que estamos fazendo aqui, o que seria uma bobagem. A comparação que fazemos é a do gesto. Aquele praticado pela sorveteira Bruna Atanazio aponta para o futuro que desejamos para o Brasil, e é inspirador. Já o da ministra Luislinda aponta para um Brasil que desejávamos que existisse apenas no passado, como um dia será.