08.11

Vida longa para a casa de Clarice Lispector

Tombamento, publicado no Diário Oficial, pega de surpresa a Santa Casa de Misericórdia, dona do imóvel.

Luce Pereira (texto)
Editoria de arte (imagem)

Sejamos realistas: nos transformamos em um país que se acostumou a receber migalhas do poder público, sobretudo quando o assunto é cultura. Melhor exemplo não poderia haver do que o processo de tombamento e requalificação do imóvel com vista para a Praça Maciel Pinheiro, no qual a escritora Clarice Lispector viveu parte de sua infância. Desde as comemorações em todo o país pela passagem dos 30 anos da morte dela, em 2007, a ideia de transformar o velho casarão em espaço cultural dedicado à obra e à memória começou a ganhar forma. Muitos entusiastas passaram a acreditar no sonho, esquecidos, no entanto, que aqui promessas têm vida longa e neste caminho os sonhos vão virando fumaça ou se realizam quando as expectativas já jogaram a toalha. É uma lástima, mas é assim. Não perdi de vista notícia veiculada em 4 de maio de 2014 anunciando para dali a no máximo mais 11 dias a entrada do pedido de tombamento do imóvel, feito pela Santa Casa de Misericórdia (proprietária), que seria o ponto de partida para a transformação do prédio em memorial. De lá para cá passaram-se três anos e meio sem nada acontecer. Ontem, o Diário Oficial do Estado trouxe, enfim, a confirmação do processo de tombamento, mas que teria se dado a partir de iniciativa do presidente da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Luiz Otávio Cavalcanti, e não da instituição presidida por dom Fernando Saburido.
Apesar dos suspiros de alívio de quem já não acreditava em garantias formais de preservação do imóvel, restou certo mal-estar que a Santa Casa justificou como sendo fruto da surpresa com a notícia. Depois de consultar o superintendente geral da instituição, Fernando Costa, a nova assessora jurídica, Rebeca Barbosa, disse que todos foram surpreendidos com a publicação no Diário Oficial, pois há muito as instituições discutiam o processo de tombamento e o projeto de requalificação, estando claro que a Santa Casa cuidaria dos dois. “Inclusive nosso projeto, com todos os detalhamentos propostos pela arquiteta, já estava há muito tempo na Prefeitura do Recife, não sabemos o que aconteceu”. Segundo explicou a assessora, a ideia agora é marcar uma reunião entre as partes para que a Santa Casa conheça os motivos que levaram a Fundaj a tomar a dianteira em relação ao pedido de tombamento.
Estranhezas à parte, voltamos ao ponto: lá fora, por mais curta que seja a permanência de um artista ou escritor numa cidade, o poder público não perde tempo em transformar em atração turística o lugar onde ele viveu. Antes da homenagem e do reconhecimento, vem a chance de atrair visitantes e o dinheiro que deixam por onde passam, ainda que em alguns casos esteja preservado apenas o imóvel e haja poucos objetos de propriedade do falecido. Sim, porque o que vale é a referência histórica. Mas, no caso do sobrado da Praça Maciel Pinheiro, onde Clarice viveu por 12 anos, são óbvias a falta de apetite das autoridades públicas pela receita que um memorial deste porte geraria e a pouca disposição para reconhecer a importância dada pela escritora ao Recife, cidade que ocupava espaço na memória e na obra dela.
Se é certo que somos um povo sem memória, que trata seus bens materiais e imateriais com uma indiferença assustadora, também é certo que não sabemos tirar ouro até de onde ele se encontra à flor da terra. A literatura de Clarice Lispector reluz, é de altíssimo quilate, e poucas cidades no mundo podem se dar ao luxo de figurar na rota que a escritora percorreu durante os 52 anos de vida. Mas quando perdemos tempo precioso assim para tirar do papel projetos que não exigem esforço e investimento espetaculares, que no mínimo ajudariam a incluir o Recife em um privilegiado circuito frequentado por estudiosos e admiradores, é porque seguimos preferindo débitos a bônus. Porém, mesmo com o mundo estranho como está, é irresistível sonhar com o dia em que finalmente mudaremos.