Problema no Brasil e no mundo retoma a atualidade e o pioneirismo da obra de Josué de Castro.
Vandeck Santiago (texto)
Helder Tavares/DP (foto)
Minutos antes de receber uma das maiores premiações mundiais da época, Josué de Castro perdeu a voz. Teve um terrível acesso de tosse e não conseguia falar. Estava na cerimônia de entrega do Prêmio Internacional da Paz, que lhe fora concedido pelo Conselho Mundial da Paz, entidade sediada em Helsinque (Finlândia), onde se realizava o evento, em 1954. Após muito custo, ele insistiu em dizer algumas palavras. Foi o discurso mais curto que todas as autoridades presentes já tinham escutado. Josué de Castro conseguiu falar apenas uma frase:
— O primeiro direito do homem é o de não passar fome -, ele disse, e sentou-se, exausto, sob palmas.
Pernambucano do Recife, onde nasceu em 1908, Josué foi a personalidade mais importante do século 20 no estudo da fome e na ação contra suas consequências. “Ele foi um gênio. Deveria ter um monumento em cada cidade do Brasil, porque é um dos maiores pensadores do século 20”, afirma o sociólogo suíço Jean Ziegler, relator da ONU para o direito à alimentação entre 2000 e 2008, professor da Universidade de Genebra e da Sorbonne e autor de vasta obra sobre a fome no mundo.
No momento em que o Brasil está sob ameaça de volta ao Mapa da Fome da ONU (da qual havia saído em 2014) e que o caso de uma criança que desmaiou de fome numa escola em Brasília ganha repercussão nacional, é momento de lembrar Josué de Castro. Na hora em que acaba de ser divulgado relatório da ONU mostrando que o flagelo voltou a aumentar no mundo após 10 anos, é hora de tornar a Josué de Castro.
Foi a partir de dois livros que o seu nome ganhou repercussão nacional e internacional. O primeiro, Geografia da Fome, de 1946, sobre o Brasil; o segundo, Geopolítica da Fome, de 1951, sobre a mesma questão, só que agora em escala mundial. “Este livro foi uma revelação para os europeus”, disse Jean Ziegler. O raciocínio que consolidara no Brasil, a partir da obra de 1946, ele expandia para o mundo: a causa da fome não se devia a caprichos da natureza, mas a — vamos chamar assim — caprichos da política.
“O autor brasileiro mais lido e comentado no mundo inteiro”, dizia matéria da Folha de S. Paulo (então chamada Folha da Manhã) na edição de 15 de setembro de 1951. “No pós-guerra, todas aquelas instituições criadas ao abrigo da ONU para melhorar o mundo tinham como guru máximo Josué de Castro”, atesta Ignacy Sachs, um dos principais pensadores da atualidade sobre o desenvolvimento sustentável.
Josué foi indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel: em 1953, 1963, 1964 e 1965 (em todas, para o da Paz, segundo os arquivos da premiação. Alguns autores mencionam uma indicação para o de Medicina, mas esta não consta nos arquivos). Ganhou o Prêmio Franklin Roosevelt, da Academia de Ciência Política dos Estados Unidos e recebeu a Grande Medalha de Paris, quando teve seu trabalho comparado (pelo pioneirismo) ao de Pasteur e Einstein, dois outros cientistas que também haviam recebido a premiação.
Uma das principais características dele era que combinava a reflexão com a ação. Elegeu-se deputado federal por Pernambuco em duas ocasiões (1958 e 1962). Foi presidente da FAO (Organismo das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), sendo o primeiro latino-americano a ocupar o cargo, no qual ficou por dois mandatos, de 1952 a 1956. Criou em 1957, junto com personalidades internacionais, a Associação Mundial de Luta contra a Fome (Ascofam), a primeira entidade internacional de combate ao problema, e presidiu a primeira Campanha de Defesa Contra a Fome, promovida pela ONU, em 1960.
O que Josué dizia já nos anos 1950/1960 permanece atual: o problema não é de falta de alimentos. Eles existem. O problema é o acesso das populações a esses alimentos. Voltemos ao sociólogo suíço, em entrevista a Leonardo Cazes, publicada na matéria cujo título tomei a liberdade de repetir neste meu artigo (“ ‘Uma criança que morre de fome hoje é assassinada’, diz Jean Ziegler”, O Globo, 13/07/13): “O relatório da FAO mostra que o número de vítimas cresce, mas que a agricultura mundial poderia alimentar normalmente, com uma dieta de 2,2 mil calorias por dia, 12 bilhões de pessoas. Então, uma criança que morre de fome hoje é assassinada. Fome não é mais morte natural. É massacre criminoso, organizado”.
Josué de Castro foi cassado pela ditadura na segunda semana do golpe civil-militar, em 9 de abril de 1964. Morreu em Paris, no exílio, de infarto, aos 65 anos, em 24 de setembro de 1973. Aquela frase que ele precisou arrancar da garganta, na solenidade em Helsinque, continua mais viva do que nunca: o primeiro direito do homem é o de não passar fome.