05.12

Que haja mais céticos ávidos de conhecimento, e menos crédulos resignados à própria ignorância.

Vandeck Santiago (texto)
Caravaggio/ Reprodução (imagem)

Veem esta cena? É de célebre quadro de Caravaggio, “A incredulidade de S. Tomé” (12601-1602), e retrata o discípulo cético tocando as chagas de Jesus, para ter certeza que ele ressuscitara. Depois de crucificado, Jesus aparece para outros discípulos, mas Tomé não estava lá, e duvidou da ressurreição. “Se não vir nas suas mãos o sinal dos pregos, e não puser o meu dedo no lugar dos pregos, e não introduzir a minha mão no seu lado, não acreditarei”, disse ele, conforme o Evangelho segundo São João. Certa vez, pouco antes de morrer, Ele dissera: “E, para onde Eu vou, vós sabeis o caminho”. Tomé replicou na hora: “Senhor, não sabemos para onde vais, como podemos nós saber o caminho?”.
O padroeiro dos jornalistas é São Francisco de Sales, mas nessa categoria também poderia estar São Tomé, que representa o ceticismo no qual se apoia nossa profissão – ele precisa ver para crer. Sem provas náo há verdade, mas versões. Por isso, quando os seus companheiros vêm lhe dizer que viram Cristo ressuscitado, Tomé reage: pera lá, tenho que tocar nas suas chagas para ver se é ele mesmo. E então, segundo a Bíblia, o Senhor lhe aparece, e lhe concede o que para um jornalista seria uma satisfação suprema: descobrir a verdade, tê-la tão perto de si a ponto de poder tocá-la… “Introduz aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos”, diz Jesus. “Põe a tua mão no meu lado. Não seja incrédulo, mas homem de fé”. Tomé faz isso, e se convence que está diante do Jesus ressuscitado. “Meu Senhor e meu Deus!”, exclama.
Não sou especialista em religião, muito menos quero fazer aqui proselitismo religioso (Deus me livre…). Aprendi com Graciliano Ramos – um ateu, que tinha a Bíblia como livro favorito – que este livro (sagrado, para muitos; para outros, não) é uma permanente fonte de inspiração, independentemente de crenças. Em toda redação por onde passei, sempre tinha pelo menos um colega com o seu exemplar – aqui no Diario este colega é o colunista e grande repórter Jaílson da Paz, cujo exemplar consultei para checar as citações mencionadas nos parágrafos anteriores.
Valho-me da história de São Tomé como referência para falar não de religião, e sim de leitura e conhecimento – mais precisamente, da tragédia que se transformou a (falta de) compreensão das pessoas com o que leem. Autor de diversos livros na área, e professor de Psicologia da Universidade de Virgínia (EUA), o professor Daniel T. Willingham mostra em artigo recente no New York Times a gravidade da situação naquele país – o melhor texto que li sobre o assunto nos últimos anos (na versão espanhola do NYT: “Cómo lograr que tu mente lea”, 30/11/17).
Ele cita dados de avaliação nacional de estudantes dos EUA, que mostram elevados percentuais de falta de compreensão da leitura deles. Muitos sabem ler tecnicamente, mas não conseguem decodificar em sua inteireza o que está escrito (contexto, vocabulário, sentido). Gosto de um exemplo que ele dá, a partir da frase que seria de uma criança: “Prometi não jogar com ele, mas mesmo assim minha mãe não me deixou levar o cubo mágico para a biblioteca”. Todo texto, diz o professor, tem lacunas que devem ser preenchidas pelo conhecimento do leitor. Neste da frase, por exemplo, pressupõe-se que o leitor saiba: 1) numa biblioteca deve-se fazer silêncio; 2) cubo mágico faz barulho quando utilizado; 3) as crianças não resistem a brinquedos. “Se você não conhece esses detalhes, você poderia entender o significado literal da frase, mas não saberá por que a mãe proibiu o brinquedo na biblioteca”. Para muitos leitores, seria necessário explicar essas obviedades, porque sem isso eles não entenderiam. Se não entendem algo tão básico, como esperar que consigam fazê-lo com algo mais elaborado?
Aqui a gente passa para a etapa seguinte, que não tem a ver com avaliação de estudantes, porém de leitores em geral – e que remete diretamente ao nosso querido São Tomé. Uma das notícias mais lidas na campanha eleitoral dos EUA, ano passado, era falsa. Dizia: “Papa Francisco choca o mundo e apoia Donald Trump”. Aqui, o conhecimento prévio não era óbvio (tipo, numa biblioteca se faz silêncio), mas de contexto: quem conhece um mínimo de um e de outro, sabe que as posições do Papa são divergentes das de Trump. E, esticando um pouco mais a corda, “nunca um papa apoiou um candidato presidencial”, afirma o professor.. Eu acrescentaria que o tom sensacionalista (“choca o mundo”) também é fator para desconfiar previamente de qualquer informação.
Esses problemas não são de agora; já existiam antes do avanço da tecnologia digital. Por isso, afirma Daniel T. Willingham, a culpa de as pessoas não entenderem o que leem não é da internet nem dos smartphones. É da ignorância. A compreensão está intimamente ligada ao conhecimento dos fatos (que fornece o contexto para o entendimento).
Que haja mais céticos ávidos de conhecimento, como São Tomé, e menos crédulos resignados à própria ignorância.