No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho… O poema de Carlos Drummond de Andrade foi publicado em 1928, mas o acontecimento que os recifenses não se esqueceriam na vida de suas retinas tão fatigadas ocorreria no início da década de 1970. A pedra, no caso, seria a Igreja do Senhor Bom Jesus dos Martírios, construção de 1796 feita por pretos e pardos que se constituía no último obstáculo para a conclusão da Avenida Dantas Barreto, no centro histórico da capital pernambucana. Projeto que teve a proposta original aprovada em 1943, quase trinta anos depois se tornava uma realidade irreversível. O prefeito Augusto Lucena já havia posto abaixo cerca de 400 casarões e eliminado 11 ruas para abrir um trecho asfaltado de 550 metros de extensão por 42 metros de largura. Em troca, uma viagem do Centro à Zona Sul seria encurtada em alguns minutos, utilizando o Viaduto de Cinco Pontas, que já havia invadido o espaço da fortificação construída pelos holandeses (quer saber mais? Clique aqui).
A igreja teimava em permanecer em pé, amparada no seu status de patrimônio histórico conquistado em junho de 1971, quando a demolição era mais do que uma ameaça. Nada que uma canetada em plena ditadura militar não resolvesse. No dia 13 de abril de 1972, o Diario de Pernambuco estampou como manchete a decisão do presidente Emílio Garrastazu Médici de retirar a Igreja dos Martírios do livro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Era a sentença de morte para o prédio com fachada em estilo rococó e de onde saía a primeira procissão da Semana Santa, abrindo a quaresma.
O ministro da Educação na época, Jarbas Passarinho, ameaçou penalizar criminalmente o prefeito Augusto Lucena pela “mutilação” da Igreja dos Martírios.”Conquanto lastimando profundamente que o agente local do poder público tenha adotado a violência para, após a mutilação do templo, argumentar com fatos consumados, procedimento intolerável e que deverá provocar responsabilização penal, que proporei em tempo hábil, estou certo a igreja, segundo o testemunho de notáveis conselheiros do Conselho Federal de Cultura, só na sua fachada, e especificamente no seu frontão, apresentava algo de artisticamente admirável. Resguardado, pois, o frontão, seria mínima a perda patrimonial do burgo do Recife, valendo acrescentar que sua comunidade, pela expressa declaração de suas Câmaras de representação política (Assembleia Legislativa e Câmara de Vereadores), de suas associações de classe, de sua imprensa, da irmandade proprietária do templo, de parte considerável do clero, enfim da grande maioria do seu povo, pede a demolição da Igreja dos Martírios em proveito do prosseguimento da avenida vital para o progresso da cidade”, escreveu Passarinho para Médici.
O frontão acabou não sendo preservado, assim como as propostas de a avenida contornar a igreja. Parte do acervo, como o sino, portas e pintura do forro, encontra-se em exposição no Museu da Cidade do Recife, no Forte de Cinco Pontas.
Duas semanas antes da decisão de destombar a Igreja dos Martírios, o Diario havia publicado uma página inteira com o ritmo acelerado dos trabalhos na avenida. O texto trazia o depoimento de Isaura Caneca, descendente direta de Frei Caneca, que estava mais preocupada com a situação da Igreja de Nossa Senhora do Terço, de onde seu parente famoso saiu para ser arcabuzado. Sobre a Igreja dos Martírios? “Acho que nenhuma tradição está acabando por aqui. É certo que todos sentem saudades do passado, das casas onde moraram muitos anos. Mas tradição não existe. As casas estavam sendo constantemente reformadas. Não guardavam nenhuma característica antiga. (…) A igreja sempre esteve abandonada. Desprezada. Suas dependências foram transformadas em casa de cômodos. O que tem ali de histórico? Há pessoas que nem sabiam que aquela existia…”.
Quem passar hoje pela Avenida Dantas Barreto, que foi inaugurada oficialmente em setembro de 1973 e nunca teve papel crucial no desenvolvimento do Recife, ao chegar aos módulos 3 e 4 do Camelódromo pode imaginar que ali era a Rua Augusta, onde se situavam os fundos da Igreja dos Martírios. Não há mais pedra, cal e história no meio do caminho.
que matéria interessante.