Diário da tarde

O próprio autor recomenda: “este livro pode ser folheado num lindo dia de chuva, à falta duma boa pilha de revistas antigas”. O escritor e jornalista Paulo Mendes Campos (1922 – 1991) não tinha modéstia em tecer loas à leitura do vespertino fictício que criou quando se aposentou, no início da década de 1980. Era repórter e diretor ao mesmo tempo, por isso escrevia o que queria neste Diário da Tarde que, como toda publicação de respeito, tinha as suas seções fixas: Artigo indefinido (perfis literários), O gol é necessário (crônicas esportivas), Poeta do dia (tradução dos autores preferidos) e Suplemento infantil, além de Bar do ponto, Pipiripau, Grafite e Coriscos, estes últimos reservados para publicação de observações urbanas, poeminhas e aforismos.

O jornal de brincadeira rendeu 20 edições, que foram reunidas em livro em 1981. Esta preciosidade retornou às livrarias no ano passado, bancada pela Companhia das Letras. Em 336 páginas, Paulo Mendes Campos desfila a sua erudição com o tempero do humor tipicamente mineiro.

Abaixo, uma amostra de como se divide o livro, com as seções escolhidas ao modo “jogo da amarelinha”:

Artigo indefinido
Orlando de Virginia Woolf
Quem tem medo de Virginia Woolf? Todo mundo. Seria capaz de apostar que o autor da peça teatral leu a autobiografia de Osbert Sitwell, na qual este conta que jamais entendeu por que as pessoas tinham medo dela – mas tinham. A romancista inglesa foi um tipo acabado de onésima. Onésima, segundo a classificação de Jaime Ovalle, é a pessoa que duvida, sorri, desaponta, gela, com um senso de humor que aterroriza as pessoas de fácil ebulição emocional. Alexander Pope foi ainda mais puramente onésimo e, para verificar isso, é consultar a descrição que a própria Virginia Woolf faz do poeta numa passagem de delicioso virtuosismo do livro (romance? poema?) chamado Orlando.

O gol é necessário
A verdade integral é a bola. O futebol paixão. Esse amor que faz um homem de quarenta e tantos anos sofrear o sono da fadiga para rememorar em câmera lenta o gol de cobertura que fez pela amanhã.

Poeta do dia
Pesquisa Espiritual (Stephen Spencer)
Sou essa testemunha pela qual
tudo sabe existir.
No sangue ardente,
a sussurrar no sono,
flui torrente
de astros, lutas e o polo glacial.
Sou o que não sou.
O penhasco mudo dá-me um anjo.
Cavalgam nos rastros das lendas raciais meus sonhos.
Astros roçam-me as costas.
Sou só, sendo tudo.
Eu, que digo chamar este olhar.
Eu, espelho onde as coisas irão ver
apenas a si mesmas, vou morrer.
As coisas, a visão, irão viver.
Mentem os astros neste olhar, o meu.
O que passa, perdendo-se, sou eu.

Suplemento infantil
Apollinaire
Incerteza, ó meus desejos,
vamos em frente somente
como se vão os caranguejos
andando de trás pra frente.

Bar do ponto
Linhas tortas
No mesmo dia 10 de dezembro de 1922 Einstein e Bohr receberam o Prêmio Nobel de Física.
A bomba iria explodir às 8h15 da manhã do dia 6 de agosto de 1945.

Piripipau
Rosa e JK
Guimarães Rosa, desassombrado no sertão poético, cauteloso em prosa protocolar, foi contemporâneo de Juscelino na Escola de Medicina de BH. Presidente, JK pediu ao seu auxiliar João Milton Prates que localizasse o escritor por telefone: ele próprio queria comunicar ao amigo sua promoção a ministro do Itamaraty. Rosa fez um apelo ao assessor: – Um momentinho só: tenho que vestir o paletó para falar com o presidente.

Grafite
Atento sou
A Fernando Pessoa, que escreveu, em preto e branco, Tabacaria.
A Shelley, que saiu nu e sem Deus
A Li Po, bêbado lírico elementar.
A Dante, supremo redator.
A Shakespeare, poeta do povo.
A Bernanos, roído pelo tédio da paróquia.
A Morgenstern, que viu o objeto desgarrado do sujeito.
A Rimbaud, com aquela cara de porcelana irada.

Coriscos
A rosa persegue o poeta como a roda persegue o engenheiro.

 

A Companhia das Letras disponibilizou PDF com as trinta primeiras páginas do livro. É quando Paulo Mendes Campos apresenta a sua tradução pessoal para o Cântico dos Cânticos.