Em Foco 0103

Em tempos de radicalização e de casos flagrantes de corrupção, quando todos gritam e cada um só escuta a si próprio, a generalização reina. Mas dai à verdade  há um longo caminho a percorrer. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco do domingo, por Vandeck Santiago. A arte é de Samuca.

“É tudo ladrão”

Vandeck Santiago  (texto)
Samuca  (arte)

O juiz de um caso famoso passeia com um Porsche apreendido de um réu milionário.
Aí o que é que muitos pensam? “Esta é a nossa Justiça”. “Olha só o nível dos nossos juízes”.
O camarada vai a uma repartição pública, é mal atendido e o que pensa? “Funcionário público é uma desgraça. Preguiçoso e cheio de direitos”.
Um médico que se opôs à vinda de médicos cubanos para trabalhar no Brasil é denunciado por envolvimento em fraudes de próteses ou por ganhar sem trabalhar (bate o ponto e vai embora). E aí vem o coro: “Olha só, é por isso que os médicos daqui estão contra os colegas de Cuba”.
Nesses três casos – todos tirados do nosso noticiário recente – há um elemento perigoso infiltrado: a generalização. Você pega um caso particular e projeta para o geral. A parte vira o todo, e o resto que se dane. Em tempos de radicalização, desaparece o espaço para a análise e a generalização reina.
Se qualquer um de nós parar e refletir um pouco, vai encontrar na memória outros casos que apontam exatamente o contrário daquele tom “generalizado”. Dia desses eu estive em um hospital público para doentes graves, acompanhado uma pessoa amada. Um daqueles ambientes que parecem saído de uma das cenas do filme Guerra Mundial Z – lá fora, dezenas, talvez centenas, de doentes; lá dentro, um pequeno grupo de funcionários sem parar um instante procurando atendê-los e dar-lhes encaminhamento, enfrentando as dificuldades diárias de quem trabalha no setor (testemunhei as deliberações para, no hospital lotado, conseguir um leito livre para um doente mais grave que os outros). Também já fui testemunha do trabalho honesto, incansável e competente de outros médicos – se eles estão contra a vinda dos cubanos não é por egoísmo, por serem insensíveis ou desonestos (sim, há alguns egoístas, insensíveis e desonestos entre os que foram contra, mas transformar “alguns” ou “grupos” em “todos” é incorrer no erro da generalização de que estamos tratando aqui).
A generalização deixa qualquer análise capenga e abre espaços para enganos de todo tamanho. No caso do Mais Médicos, por exemplo, minha opinião é que a polêmica causada pelo programa foi mal conduzida pelo governo e seus aliados. Empurrou a categoria para o isolamento, como se todos fossem “egoístas e insensíveis”, e com isso o que conseguiu foi fortalecer entre eles uma posição ostensiva contra o próprio governo.
No caso dos escândalos de corrupção, a generalização também cobra seus honorários. Quando você diz que “todos são culpados”, acaba facilitando a vida dos verdadeiros responsáveis porque estes findam escondendo-se por trás dos que não são responsáveis – e estes, acusados como parte do “todos”, veem-se obrigados a defender-se no mesmo lado dos “verdadeiros responsáveis”. As mentiras se disfarçam em meias verdades, interesses escusos aparecem travestidos de objetivos éticos e criam-se brechas para quem tem o rabo preso poder escapar. Já vi isso muitas vezes, desde escândalos dos anos 1980.
É fato que a generalização não surge do nada. Ela surge onde há fatos que a ajudam a prosperar (daí o grande apelo popular que costuma ter). Mas o fato é que, entre outros exemplos, nem todo juiz aproveita-se do cargo para cometer irregularidades, nem todo funcionário público trata mal o público, nem todo médico é insensível à dor alheia e nem todo jornalista vive submisso à mentira e à manipulação. O mundo é mais complexo do que isso. A generalização “facilita” a crítica a pessoas e instituições, e é instrumento de sucesso garantido para quem quer apenas ganhar apoio popular. Mas daí à verdade há um longo caminho a percorrer.