collage sentidos

No dia 12 de março, a pauta é inevitável. O que falar de Olinda e do Recife nos respectivos “aniversários”? Desta vez, a pauta dos 478 anos da capital pernambucana ficou a cargo do repórter de Local, Paulo Trigueiro, que procurou identificar a cidade através dos cinco sentidos. Ele só tinha um ano de cidade quando o Recife completava 450 anos de fundação e a editora do Viver, Lêda Rivas, usava uma abordagem parecida, apresentando sons, cheiros e cores que caracterizariam a terra dos mascates e dos artistas. Se Paulo mostrou o Recife pela impressão dos entrevistados, Lêda optou em apresentar a cidade que despertava. Ao longo de uma semana, ao lado do fotógrafo Arlindo Marinho, ela percorreu o Centro das 4h às 6h, descrevendo um universo pouco conhecido pela maioria da população. Nestes 28 anos que separam os textos de Paulo e de Lêda, o Centro do Recife passou por várias mudanças, mas sua gente continua a desafiar os prognósticos e fazer história à sua maneira.

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Leia abaixo, na íntegra, o texto de Lêda publicado no dia 12 de março de 1987.

Uma cidade desperta: no ar, seus sons, cheiros e cores

Lêda Rivas (texto)
Arlindo Marinho (fotos)

Todas as manhãs, chova ou faça sol, seu José Eduardo de Souza percorre o mesmo itinerário, descendo do subúrbio em direção à cidade. Ele é um dos poucos vendedores de cuscuz que, tabuleiro na cabeça, reedita uma cena como que saída das gravuras de Debret. Pelas ruas centrais do Recife – com paradas preferenciais forjadas pela amizade que, aos poucos, foi conquistando entre os trabalhadores da noite – vai vendendo sua iguaria, resquício árabe que fincou raízes em solo nordestino e hoje, infelizmente, resta um tanto adulterado pelos sabores da aculturação. Não teme os marginais – inevitáveis em toda cidade que cresceu desorganizadamente – e muito menos as almas penadas que os mais supersticiosos costumam ver, esgueirando-se pelas ruelas tortuosas ou escapulindo de sobrados estreitos e tisnados pelo musgo do tempo.
Entre um gole de café quentinho e dois dedos de prosa, relaxa de longa caminhada em frente às oficinas do Diario. Curioso, pergunta sobre as “novas” do dia e, como toda a gente – o mundo lhe chegando pelo jornal – nem sempre tem do que se alegrar. Até que venda toda sua mercadoria, ficará, ali, os olhos arregalados ante as manchetes, a tinta preta desenhando um universo estranho e, ao mesmo tempo, magnífico. Depois, tabuleiro vazio na cabeça, à maneira dos seus raros companheiros vendedores de cuscuz e mungunzá, refaz o caminho de casa, quando a cidade começa a despertar.

m_Recife - 450 anos - cuscuzOS CHEIROS
E quando começa a despertar, o Recife tem um cheiro agridoce que vem do alto-mar, atravessa a barreira natural das docas e espalha-se por todo o bairro velho. Um exótico cheiro, mistura de restos de prazer e álcool, dormitando ainda no embrião da cidade. Espreguiça-se, evitando acordar, este recanto da antiga península transformada em ilha, enlaçada ao resto da cidade pelas pontes Buarque de Macedo, Maurício de Nassau, Giratória, Limoeiro…
Na semiescuridão da madrugada que termina, o Arrecife dos navios embala o sono das mulheres cansadas, dos boêmios desencantados, dos vagabundos sem caminho. Tudo ainda é silêncio no bairro portuário, nas avenidas Rio Branco e Marquês de Olinda, nas ruas do Bom Jesus e de São Jorge, Vigário Tenório e Alfândega.Um ou outro transeunte passa; dois ou três fiteiros se estendem sobre as calçadas; num bar insone um retardatário põe para rodar uma radiola de ficha. É sempre tempo para se curtir uma dor de cotovelo, enquanto ali não aporta a mesclada população de banqueiros, comerciantes, estivadores, industriais, bancários, operários… Um night club, rememorando os tempos áureos da zona, mantém as portas abertas, travestido agora de restaurante, apto a servir a primeira refeição do dia, enquanto se lava a casa para as próximas 24 horas.
Têm nomes curiosos, os velhos cabarés, estrangeirados, influência implacável e irrefreável dos ventos que sopram do porto. E as novas casas, surgidas à sombra dos antigos prostíbulos, lhes imitam os passos. De um lado, a Fifth Avenue, mais adiante, o Lisboa Drinks, em frente, o Adelia’s Place. Ninguém escapou do impacto do genitivo saxônico, trazido a bordo dos cargueiros, pela fala alienígena dos marujos chegados do outro lado do mar. Muito menos as mulheres, que pelos olhos dos marinheiros conhecem Europa, França e Bahia. Outros mundos, quem sabe, mais felizes.

m_Recife - 450 anos- rua
Imponente, a Igreja de Madre de Deus – as chamas, uma lembrança distante – tem as portas fechadas; os ouvidos talvez estejam atentos aos sussurros e lágrimas do povo dos Arrecifes, como há quase três séculos. Indiferente, a Alfândega resta adormecida, seus arcos romanos espiando o cais e esperando o dia raiar para altas negociações.
Tem um cheiro estranho, este Recife velho e múltiplo, quando acorda. Uma misteriosa mistura de maresia e petróleo, de farinha tostada e azeite, de suor, urina, dejetos, perfume barato, aguardente. Uns pensarão que é enxofre. Outros dirão que é incenso.

AS CORES
São cinco horas da manhã no Cais de Santa Rita. O sol se faz de rogado e tarda a aparecer. Um bêbado, claudicando, mostra todo seu espanto ante a nossa impaciência. “Olha o sol ali!”, esbraveja, apontando acima da cabeça. Para ele, já é meio-dia.
Ao longo do velho Cais do Espírito Santo, uma procissão de barracas se enfileira, algumas ainda abertas ao público, vendendo cachaça, bolo de bacia, caldo de cana, bolo de macaxeira, refrigerantes, cachorro-quente de aparência suspeita e duvidosa origem. Ali se concentram os ônibus do grande Recife, começando a trazer levas e levas de trabalhadores. Gente de todas as profissões, colorindo a cidade com seus trajes humildes.

m_Recife - 450 anos - porto
Tem todas as cores este Recife e amanhecemos à beira do cais. O azul e branco dos motoristas/cobradores, o laranja vivo dos garis que arrastam o lixo da cidade; o verde-musgo da cana moída e atirada ao chão; os estampados sem grife dos vestidos de chita das meninas que sonham conquistas a cidade; o vermelho das melancias abertas e expostas ao final da madrugada, na Rua do Porão. Por onde, aliás, um tímido comércio aflora, antes que o dia desponte. Entre bocejos e resmungos, o pequeno vendedor começa o seu dia, espremendo-se entre os concorrentes. São dezenas de barracas, apertadas umas às outras, à disposição do freguês madrugador: misturam-se ali ervas medicinais, verdadeiros milagres da fitoterapia, frutas da época, bijuterias, um guarda-roupa completo, discos usados, velhas revistas, brinquedos. Um arsenal multicolorido que enfeita a cidade, quando nasce o dia.
Cinco e quinze da manhã. Por trás de nuvens cinzentas, o sol se esgueira, Tem um tom dourado que dói na vista. Desponta agressivamente por entre stratus e, rapidamente, despeja seus raios sobre o Capibaribe correndo manso. Um barqueiro solitário cruza em direção à bacia do Pina.
Já não há necessidade de iluminar a cidade, a essa altura brilhando sob a luz que Gilberto Amado imaginou branca. E a Companhia de Eletricidade é pontual, nesses tempos de racionamento: às cinco e meia desliga-se a iluminação pública.
O bêbado, equilibrando-se na mágica geometria dos ébrios, retorna e debocha: “Eu não disse? O sol nasceu?”.

m_Recife - 450 anos - Porão

OS SONS
Pela Rua do Porão se chega a São José. Por outras, também. Mas a contramão é desafiante e por ela vamos descobrindo os sons da cidade. Dali a meia hora o mercado abre suas portas para a grande e variada clientela. Os primeiros sons da cidade despertam os retardatários. Vendedores ambulantes apregoam suas mercadorias, ao longo da Praça Dom Vital; um clique meteórico denuncia a presença de um lambe-lambe; folhetistas de cordel, repentistas, emboladores – estranhos Quixotes de uma Mancha igualmente singular – preparam-se para o grande espetáculo em que em breve a praça se converterá. Remanescente da época do cinema mudo, o Glória assiste, em silêncio, à passagem preguiçosa dos transeuntes.
A basílica repousa ao largo da velha praça, entre mendigos e mulheres da difícil vida fácil, as torres apontando desafiadoramente para o céu, o templo coríntio resistindo à subversão do templo e dos valores. Para o céu também apontam outras torres, mais velhas ou mais jovens que a igreja dos capuchinhos. Entremeiam-se com os telhados gastos e avermelhados dos sobrados magros de São José. Livramento, Santa Rita de Cássia, Rosário dos Homens Pretos, São José do Ribamar, matriz de São José, basílica do Carmo, igrejas sobrevivendo mais da fé dos homens do que da sensibilidade dos administradores.

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Às seis horas, o metrô despeja mais um agrupamento de trabalhadores, adentrando a cidade sob o Viaduto das Cinco Pontas. Vozes, murmúrios, risos derramam-se pela Dantas Barreto lado a lado com o chacoalhar das marmitas e o passo áspero dos operários. De alguma parte soa um apito. Batem forte as madeiras das barracas que se armam ao longo da artéria, pisando na memória daquelas velhas ruas soterradas, implacavelmente, sob a ação do progresso. Quem se lembra da Rua Augusta? Quem conheceu a igrejinha dos Martírios?
Meio adormecido, o Pátio de São Pedro abre seus braços para os pombos que toda manhã pousam solenes sobre os sobrados setecentistas, na torres da concatedral cataventos de anjinhos vigiam o sono dos carnavalescos. Há sempre som, cheiro e cor de carnaval no pátio, o sagrado e o profano em perfeita harmonia. Dali se insinuam ruas estreitas, a Filipe Camarão, lembrando o herói da guerra batava, a das Águas Verdes, rebelde e romântica, evocando Mascates. Paralelamente, seguem as ruas comerciais, as portas das lojas abrindo cedo para mostrar “o variado estoque”. Os primeiros cumprimentos, vozes misturadas ao ranger de portões metálicos, sotaques arrastados, ecos do Neguev, do Bekaa, do Jordão, do Eufrates. Confraternização semítica, um Yom Kippur permanente, a guerra perdendo-se em golfos distantes.

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O Recife acorda para um novo dia. Os ruídos se confundem, as pessoas se cruzam em total desordem, as buzinas dos carros anunciam que a cidade já não dorme. Na Praça da Independência, as meninas da Rua Diario de Pernambuco cedo assumem seus lugares, dando início a uma ingrata jornada de trabalho; os taxistas, à falta de passageiros, armam seus tabuleiros de dominó; um bazar colorido e barulhento estende-se em tendas desordenadas a caminho da Larga do Rosário. Daqui a pouco vão confrontar-se os lamentos dos emboladores, os pregões dos camelôs, as imaculadas vozes dos evangélicos, o poluente som dos alto-falantes vendendo a ilusão da loterias. Os sinos de Santo Antônio gemem (e por tantos já dobraram!), num chamamento aos fiéis. Dona Maria, que de tanto dor enlouqueceu na vida, toma banho, seminua, na fonte da Pracinha. Os olhos de bronze de Aníbal espreitam tudo, no canto da praça, dominando sobre os seus Pirineus, a visão da cidade conquistada e que ele amou como a nenhuma outra.
E o Recife acorda embalado nos braços dos seus santos, dos seus heróis, dos seus poetas, dos seus bêbados e dos seus visionários.

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