Em Foco 0504

Rituais da Semana Santa dão lugar à pressa de se viver tudo aqui e agora, como manda o figurino mais profano. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco deste domingo, dia 5 de abril, por Luce Pereira. A ilustração da página foi feita por Greg.

Ninguém vem para o almoço de Páscoa

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

Antigamente era assim: as famílias católicas cumpriam ao pé da letra, todos juntos, os rituais da Páscoa. Desde o Domingo de Ramos, que celebra a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, até o próximo, quando a festa da ressurreição de Cristo encerra o ciclo. Sobretudo o dia de hoje, por motivos óbvios, sempre foi muito esperado: bacalhau à portuguesa, compotas, vinho, crianças se esbaldando no que restou do estoque de ovos de chocolate, mais outra daquelas invenções que, tão logo infestaram o mundo, fizeram a indústria exclamar “bingo!”. O cenário destas memórias, naturalmente, não são lares onde a fartura e a união jamais caminharam juntas. Nestes, até hoje, sofrer é uma ordem, não um atitude de solidariedade com a Paixão do “ungido”.
Mas em quantas casas ou apartamentos domingos como o de hoje se celebram à moda antiga? Contam-se nos dedos. A promessa de feriado gordo é a primeira a encarregar-se de decretar um silêncio compulsório, diferente do silêncio daqueles dias de contrição e respeito extremos. Nas igrejas, durante o período, os santos eram escondidos sob mantos escuros (pretos ou roxos) e as músicas das procissões enchiam o coração de profundo pesar. Abater-se em sinal de reconhecimento ao suplício do Calvário funcionava como parte da tarefa de ser cristão; assim é que os pés se descalçavam para acompanhar as estações da Via-crúcis e se os céus se enchiam de nuvens carregadas (não por milagre, mas porque é começo de outono, no Hemisfério Sul), o entendimento haveria de ser um só: até o tempo reflete aquela dor.
Hoje, não. Nas grandes cidades, o feriado gordo costuma deixar os cômodos desertos, geralmente habitados apenas por pessoas mais velhas que resistem a pegar a estrada, enfrentar trânsito pesado, recantos turísticos com visitantes saindo pelo ladrão, violência, barulho e, enfim, a ver o excesso de profano tirando da data um encanto mais doce do que qualquer ovo de chocolate. Preferem as lembranças, embora elas deem a impressão de que as pessoas ausentes no almoço do domingo de Páscoa estão mais distantes do que os quilômetros que as separam; encontram-se em um tempo onde as coisas do coração não podem competir com a pressa em viver tudo, aqui e agora.
Mas, afinal, não há nada de desesperador em sentar-se à mesa com as memórias, sabendo que ninguém vai aparecer sem avisar para o almoço deste domingo – porque esse tipo de surpresa passou a ser interpretada como “falta de verniz”. Desesperador, sim, é incomodar Cristo, justamente hoje, com o pedido de que traga todos de volta para casa sãos e salvos, pois este mundo não está de brincadeira. Se calha de Ele ouvir, então as lembranças da Páscoa como símbolo de amor podem ser revisitadas com a cabeça já no travesseiro, enquanto o sono não chega anunciando que a segunda-feira está à porta, trazendo com ela a via-crúcis de cada um. Aleluia, ainda assim, porque viver não tem preço.