“Tudo. Desde contínuo a diretor do jornal. Não há muita diferença mesmo”. Quando Irineu Marinho, fundador e proprietário de O Globo, no Rio de Janeiro, recebeu daquele jovem gaúcho que não tinha onde cair vivo esta resposta desaforada sobre o que pretendia fazer se fosse contratado, decidiu apostar no que viu e, principalmente, no que ouviu. A palavra era a arma de Apparício Torelly e o humor a sua munição. Figura célebre em Porto Alegre por suas tiradas desde a época da Faculdade de Medicina – curso, aliás, não concluído – Apporelly, como gostava de ser chamado, rapidamente decidiu ter o seu próprio jornal, onde poderia fazer de tudo mesmo. Em 1926 fundou A Manha – uma brincadeira com o jornal A Manhã, um dos mais sérios da época – e adotou o slogan “quem não chora, não mama”. A linguagem do semanário seria “candente. Às vezes, com dente”.
A criação do personagem Barão de Itararé caiu como uma luva para Apporelly criticar a sociedade com traços de falsa fidalguia. O título veio do local em São Paulo onde se deveria travar o confronto decisivo entre os revoltosos de 1930 e as tropas do presidente Washington Luís. Um encontro que nunca houve, mas a concessão estava sendo feita a uma “personalidade de excepcional valor, que se distinguiu no campo de batalha”.
O jornalismo de humor deve muito a Apporelly. A Manha era pródiga em fotomontagens e caricaturas, assim como pequenas frases que acabaram se incorporando ao linguajar popular. Em 1932, O dono do jornal anunciou que havia sido detido e advertido pelas autoridades para que “tomasse muito cuidado com sua linguinha de prata”. No texto, Apporelly acrescentou que ficou sensibilizado e “posou gentilmente, de frente e de perfil, para os fotógrafos da polícia”.
À frente do Jornal do Povo, veículo comunista, em 1934 o Barão chegou a ser sequestrado por oficiais da Marinha influenciados por integralistas, um dos alvos da época de A Manha. O humorístico voltou à cena, desta vez com uma placa na porta do diretor, com os dizeres “entre sem bater, mas não saia sem anunciar”.
A militância fez com que o Barão acabasse compartilhando o cárcere com Graciliano Ramos e outros esquerdistas no final de 1935. Até o final da segunda grande guerra, as coisas não foram fáceis para o fidalgo barbudo. Em 1946, foi a vez de tentar a política. Candidatou-se a vereador no Rio de Janeiro com o slogan “mais água e mais leite, mas menos água no leite”. Acabou eleito e deu sua contribuição até a cassação do Partido Comunista em 1947.
De volta ao jornalismo, o Barão voltou a ter sucesso ao publicar os Almanhaques, compilações do material já publicado no A Manha com textos inéditos. O primeiro saiu em 1949. O último foi editado em 1955. Até a sua morte, em 1971, o Barão viu surgir uma nova geração do humor que viria a dar as cartas no jornalismo até a década de 1980. Nomes como Stanislaw Ponte Preta e Millôr Fernandes são discípulos diretos de Apporelly.
Bom saber que o legado do gaúcho continua firme. Prova é que o livro Entre sem bater – A vida de Aparício Torelly, o Barão de Itararé, escrito por Cláudio Figueiredo e lançado pela editora Casa da Palavra, em 2012, esgotou toda a sua tiragem. As 480 páginas são resultado de uma extensa pesquisa feita pelo autor, que em 1987 já havia lançado As duas vidas de Apparício Torelly – O Barão de Itararé. Um simpático perfil do Barão, de autoria de Leandro Konder, foi publicado em 1983 pela editora Brasiliense na coleção Encanto Radical. Em 1995, a editora Studioma relançou em bancas trechos do jornal A Manha, em edições bem populares. Todas as obras são leituras recomendáveis para se tornar discípulo do dono do único jornal que não tinha expediente, “porque jornal sério não vive de expediente, mas cobra assinaturas”.
Em 2002, a Editora da USP começou a publicar os Almanhaques em versão fac-similar. Três volumes trouxeram novamente aos leitores as piadas, charges, adivinhações, jogos e até receitas que surgiram da cachola do Barão. Um tesouro para ser garimpado nos sebos. Três vivas para o Barão, também patrono – à revelia, claro – deste blog.