Em Foco 1004

Primeira obra do PAC no Brasil, Conjunto Habitacional Abençoada por Deus, no bairro da Torre, que abrigou moradores das antigas palafitas de Brasília Teimosa, no Recife, está em “degradação acelerada”. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta sexta-feira, por Silvia Bessa. A foto que ilustra a página é de João Velozo.

Esqueceram de cuidar das pessoas

Silvia Bessa  (texto)
João Velozo  (foto)

Saíram de uma ilha de palafitas, casas erguidas com estacas acima d´água, e agora estão numa ilha de pedras. O lixo, a pobreza e policiais em ronda ainda fazem parte do ambiente daquelas pessoas. É quase inacreditável a ausência de uma rede de proteção social dos que moram no complexo habitacional anunciado pela Prefeitura do Recife como a primeira obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Brasil. O conjunto Abençoada por Deus, batizado assim por abrigar 428 famílias remanescentes de palafitas da comunidade de mesmo nome no bairro da Torre, em nada lembra as fotos publicitárias da época da inauguração, em 2008. Foi muito pouco tempo para uma deterioração tão profunda, digo como espectadora de dois momentos.

Lixo acumulado, mato sem capinação, a rede de esgoto há anos não funciona. Os residentes só sabem informar que, por falta de alternativa e vendo fossas esborrando com frequência, apareceu quem desse solução improvisada furando um cano para que os dejetos seguissem para o rio. No quesito estrutura predial, os danos vão além da má conservação. Há fissuras nas paredes com largura de até três dedos, algo que preocupa os moradores, sobretudo em períodos de chuva. “Já pensasse se houver uma tragédia com meus filhos? Deus me livre. Fico vigiando eles para não pegarem nas paredes quando chove porque a água escorre e chega nas tomadas”, conta Vera Emburg, mãe de Ana Catarina (17 anos), Levi (14) e Gustavo (de 11 anos).

Há danos de construção em vários blocos e quem lá mora não sabe nem mais a quem recorrer para reclamar. “Essa questão das rachaduras a gente reclama desde 2012. Ouvimos promessas da prefeitura e nada até agora”, diz Ivaneide Francisca, atual presidente da Associação dos Moradores – fundadoras das palafitas, residente do Abençoada por Deus e sempre atuante na associação. São muitos os problemas, mas pelo jeito nem o simbolismo da primeira obra do PAC e uma das primeiras do Brasil, que consumiu cerca de R$ 14 milhões dos cofres públicos, conseguiu mobilizar com eficiência a Prefeitura do Recife e o governo federal. Ivaneide anda pelas ruas por entre os blocos do Conjunto Abençoada por Deus e vai juntando demandas. Passou a responder: “Uma andorinha só não faz verão. Me ajudem”.

Imagino eu que não souberam (e não saibam) como fazer isso. São pessoas pobres, a maioria sem instrução escolar e sem formação de organização social. A intensa intermediação governamental para acompanhar a mudança dessas pessoas era imprescindível e deveria ser permanente. Semana passada, sentindo-se abandonada pelo poder público, a presidente da Associação dos Moradores, Ivaneide Francisca, pediu ajuda a um especialista no assunto, o sociólogo Luís de la Mora, do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano e Direitos Humanos da UFPE. Encontrei-o por um acaso, visitando o Abençoada por Deus na última quarta-feira, e foi lá que ouvi o professor De la Mora fazer o seguinte desabafo: “Estou muito preocupado. Vi esse conjunto sendo construído e posso dizer que a qualidade habitacional dessas pessoas está em degradação acelerada”.

Luís de la Mora é enfático ao analisar o que cerca a emblemática obra do PAC. “Criou-se aqui desde o início uma relação paternalista, com o governo público utilizando recursos do PAC para ganhar visibilidade, popularidade e voto”. Para completar, ele estampa um erro na concepção porque perpetua a ideia de que moradia é doação. “Não é. A Constituição diz que é direito. E direitos se conquistam; dádivas se agradecem”. Para o sociólogo, com larga experiência de campo, o paternalismo só será quebrado com organização social e com a comunidade assumindo o protagonismo da relação, fortalecendo-se para falar e se fazer ouvida. Sou da torcida para que a comunidade se una e perceba o seu poder. Mas não custa reclamar e cobrar que gestores olhem para a Abençoada por Deus pensando nas pessoas, esse sujeito que políticos adoram citar em discursos de efeito.