Em Foco 1204Simbólico, projeto Praia Sem Barreiras, que acaba de completar dois anos, é conquista de um novo caminho para o uso da faixa litorânea de forma mais democrática. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco deste domingo, por Silvia Bessa. A foto que ilustra a página é de autoria de Andrea Rego Barros, da Prefeitura do Recife.

Sobre o prazer de flutuar sob o sol

Silvia Bessa (texto)
Andrea Rego Barros/PCR (foto)

Foram oito anos sem sentir o mar morno. De dona Mauricéia Francisca, 66 anos, tinha sido excluído esse prazer quando ela perdeu um dos pés e teve a locomoção comprometida. Antes, adorava fazer piqueniques de um dia inteiro, cercada de amigos. Semana passada, em um sábado acolhedor, de sol brilhante na Praia de Boa Viagem, dona Mauricéia deixou a residência onde mora em Jaboatão Velho, no município vizinho do Recife, para exibir uma camisa regata azul vibrante e um sorriso diante da novidade. Foi bem acomodada em uma das cadeiras anfíbias do projeto Praia Sem Barreiras e flutuou, como talvez nunca mais pensasse poder fazer. “Foi maravilhoso”. O banho de mar assistido a pessoas com deficiência e com dificuldade de locomoção é um dos principais serviços do Praia Sem Barreiras.
Era um dia simbólico de uma iniciativa que, para mim, está entre uma das mais elogiáveis ideias dos governos locais dos últimos tempos. É a lembrança de que o dinheiro público pode ser bem aplicado em nosso benefício. O número serve apenas como referência seca para se afirmar que 1.495 pessoas puseram os pés na areia (em uma ou mais ocasiões), se molharam nas águas salgadas e puderam sentir sensações guardadas. Teve o cidadão que chegou conduzido por parentes, grupos organizados pelas Secretarias de Turismo do Estado e municipais, de Direitos Humanos ou por entidades e órgãos de apoio a pessoas cadeirantes.
Um dia depois do passeio de dona Mauricéia, uma espécie de caravana veio de Limoeiro, Zona da Mata Norte de Pernambuco, para curtir a praia de Boa Viagem junto com familiares. Nas areias, foram recebidos por jovens universitários da Unissau, que compõem a equipe de apoio. Para muitos, foi a primeira visita a uma praia. Em 2014, pacientes crianças e adultos da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) passaram uma manhã desfrutando o mar, após intermediação da Empresa de Turismo de Pernambuco (Empetur). Denise da Silva, mulher de um cadeirante, só falava da “saudade” que o marido tinha da praia. Antes de ter sofrido um acidente vascular cerebral, o marido Everaldo morava na Ilha de Itamaracá e vivia à beira-mar. Imagine só o impacto.
Fico projetando o quanto um momento desse pode ser carregado de memória afetiva e como pode render como boa recordação. Sobre o Praia sem Barreiras, há relatos marcantes. Um dos que ficou foi o do suíço Michael Peneveyle, tetraplégico, que coordenava uma organização não-governamental chamada Rodas da Liberdade, em Porto de Galinhas. Disse ele assim, quando entrou pela primeira vez no mar há dois anos, no lançamento do projeto no arquipélago de Fernando de Noronha: “A sensação da liberdade que tive foi única”, relatou, narrando ainda que ao entrar no mar teve a impressão de que o corpo ganhou outra forma e muito mais movimentos.
Acaba de ser anunciado que o projeto vai se expandir para outros pontos em Pernambuco – especificamente para Suape, a Coroa do Avião (Itamaracá), para um segundo ponto de Boa Viagem e para o Rio São Francisco (no Sertão, em Petrolina). Hoje já existem formalmente em Boa Viagem (nas imediações da Rua Bruno Veloso, funcionando), em Fernando Noronha, Porto de Galinhas (Ipojuca), Tamandaré, Candeias e Pau Amarelo (o de Olinda enfrenta problemas de estrutura e não tem funcionado). Para quem não conhece, o projeto oferece esteira antiderrapantes de acesso sobre a areia, cadeiras anfíbias para o banho (agora trocada por modelos mais modernos), profissionais para assistência ao banho de mar, uma arena com fisioterapia, piscina para lazer de crianças e quadra para vôlei sentado.
Para um estado com longa faixa costeira, com extensão territorial grande e rios que o cortam, cujo IBGE diz haver cerca de 27% da população com algum tipo de deficiência, o Projeto Praia Sem Barreiras surge como uma luz no estreito túnel da inclusão social de cadeirantes. Com ele,  os domingos de praia são mais democráticos.