Em Foco 1504

Escritor francês que teve uma passagem pelo Recife em 1960 morreu há 35 anos em Paris e deixou obra que continua sendo aclamada no mundo inteiro. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta quarta-feira, por Luce Pereira. A ilustração da página foi feita por Samuca.

A última primavera de Sartre

Luce Pereira  (texto)
Samuca  (arte)

O céu de primavera estava da cor de chumbo, naquele 15 de abril de 1980, em Paris, mas não era a face estranha do tempo que impressionava e sim a multidão (calculada em mais de 50 mil pessoas) acompanhando o enterro. O morto ilustre não brilhara em telas de cinema ou de televisão, sua obra não tinha nada de popular, mas, ainda assim, encantava a juventude em boa parte do mundo. Chamava-se Jean-Paul Sartre, principal nome de uma vertente filosófica e literária que as dificuldades dos tempos modernos só ajudam a tornar cada vez mais viva – o existencialismo. A escola enfatiza a responsabilidade do homem sobre seu destino, a partir do livre-arbítrio, e os seguidores não creem tenha sido ele criado com propósito determinado, mas que sua essência se vai construindo enquanto percorre a trajetória existencial.
Ao ler Sartre – Uma biografia, da escritora Annie Cohen-Solal (L&PM, 600 páginas), tem-se razoável ideia do que foi aquele dia. “A multidão acorre em massa, com os filhos nos ombros, para que assistam a tudo. É uma aglomeração imensa, confusa, inesperada, um vagalhão humano que ondula. Empurrões, gritos, brigas. Um homem cai no buraco em cima do caixão (…). Há quem afirme, ao passar na frente do célebre restaurante La Coupole, ter visto os garçons, do lado de fora, curvando-se diante do cortejo” (Muito provavelmente, pois era conhecido pela generosidade, sobretudo com esta classe de trabalhadores). E resume a autora: “Sartre se vai, causando com sua partida uma das manifestações mais desconcertantes do poder intelectual nesse final do século 20. O homenzinho solitário, o isolado, o anarquista, o pai sem filhos, ingressa nesse dia numa espécie de lenda. Colocado à força no pináculo oficial”.
O “à força” refere-se à eterna disposição do escritor a recusar homenagens oficiais e prêmios, inclusive um Nobel (1964), o que contribuía enormemente para o aumento de sua popularidade. E quanto mais escrevia (foram quase 30 livros entre ensaios, biografias, romances, críticas literárias…), mais se mostrava um intelectual engajado, disposto a organizar e a participar de manifestações contra regimes opressores em várias partes do mundo, ainda que suas escolhas políticas o levassem a romper com grandes e profícuas amizades, como se mostrou a do também genial Albert Camus, autor de obras como A queda e O estrangeiro. Foram estas posições que fizeram o casal Sartre-Simone de Beauvoir (sua companheira por quase meio século) desembarcar no Recife, em 1960, para uma visita que rendeu não apenas uma agenda lotada de compromissos profissionais como histórias que transformaram a ex-deputada federal Cristina Tavares, então uma jovem de 18 anos, em “a amante brasileira de Sartre”. O suposto romance com o escritor, inclusive, está no livro Tête-à-tête, de Hazel Rowley.
A propósito, é preciso dizer que a força da escrita de Sartre – fácil de ser sentida em obras como O ser e o nada, A náusea, A idade da razão e O muro – não foi a única a promover empatia tão imediata e duradoura com o público jovem. O casal estava sempre no centro de polêmicas, fosse pelas escolhas políticas, fosse pelas amorosas (os dois mantinham relação aberta, onde os jogos de sedução eram parte do pacto de convivência); levava uma vida boêmia, transformando bares em escritório (o Café de Flore, sobretudo) e tendo o álcool, o cigarro e as anfetaminas como combustível para aguentar a rotina de intensa produtividade. O figurino libertário, vanguardista, sempre exerceu fascínio indiscutível na crescente multidão de seguidores, que assim acabaram por transformá-los em um dos casais mais influentes do século 20. Na tarde daquele sábado cinzento, em Paris, os mais de 50 mil franceses que se espremiam no Cemitério de Montparnasse não tinham dúvida: estavam dando adeus a uma das mentes mais brilhantes que o mundo já viu.