Recife recifenses - Recife recifenses 1976

Mandada construir por Maurício de Nassau em 1640, a Ponte da Boa Vista já passou por várias encarnações, sempre conservando-se como cartão-postal do Centro do Recife. No século 18, o governador da província, Henrique Luís Pereira Freire (1737-1746), derrubou a antiga e ergueu uma nova, transferindo-a para o ponto onde permanece até hoje. No local da primitiva ponte de Nassau foi erguida a Ponte Seis de Março, mais conhecida como Ponte Velha. Em 1815, ainda de madeira, a Ponte da Boa Vista recebeu gradis de ferro e varandas com bancos. Em 1874, com projeto do engenheiro Francisco Ferreira Passos, ganhou o seu formato atual, com base de cimento e ferro importado da Inglaterra. Parcialmente destruída pela cheia de 1966, foi restaurada na gestão de Augusto Lucena um ano depois, mas sem respeitar as características originais.

No dia 22 de fevereiro de 1976, na sua coluna dominical “Recife, Sempre”, no suplemento cultural do Diario de Pernambuco, a jornalista Leda Rivas utilizou a Ponte da Boa Vista para defender a necessidade de levar aos mais jovens a história da capital pernambucana para a preservação do seu passado. “Estudar o Recife é vivê-lo, com todas as suas incoerências, com todas as suas discrepâncias. Ensinar o Recife aos recifenses é obrigação de todos nós”, afirmava. Abaixo, o texto original de Leda Rivas.

Por várias vezes, nesta página, tive oportunidade de alertar sobre o quase desinteresse dos nossos jovens com relação a aspectos culturais do Recife e do Nordeste. Pouco interessam a história, as nossas lutas de emancipação, o nosso caminhar seguro em busca da liberdade, a nossa evolução, os nossos acertos e desacertos, a nossa importância no contexto histórico brasileiro. Como não interessam as artes, o folclore, a literatura, os problemas de higiene e saúde – numa região onde a fome é responsável pelo alto índice de mortalidade – e outros dramas que fazem parte da nossa vida.

Estudar o Recife é vivê-lo, com todas as suas incoerências, com todas as suas discrepâncias. Ensinar o Recife aos recifenses é obrigação de todos nós. Quantos se vangloriam de viagens à Europa, onde se embriagam de paisagens e monumentos onde creem que “tomam um banho de civilização”, e nem sequer conhecem um pouco da sua terra… Quantos percorrem o Sul do país até o seu extremo, encantados com o progresso da indústria e ainda tontos com a exuberância dos arranha-céus – numa lamentável e constrangedora ausência de verde – e voltam desdenhando do Nordeste, sua miséria, sua pobreza, seus meninos cheios de vermes, seus matagais e mangues…

E esquecem que foi neste solo enfermo e dolorido que as primeiras sementes de liberdade foram plantadas. Esquecem Tabocas, Guararapes, Tejucupapo, Igarassu. Esquecem a fuga dos flamengos, os mascates… 1817, 1821, a Confederação do Equador. Esquecem sempre que, em se tratando de de livrar o Brasil de despotismo inaceitáveis. Pernambuco se ergueu primeiro e chegou primeiro a todas as grandes conquistas.

A PONTE DA BOA VISTA

Muitos, certamente, não perceberam que, nas pilastras frontais da Ponte da Boa Vista estão inscritas, em ferro, as datas mais importantes da nossa história. Sofreu cheias e ingratidões: foi muitas vezes recuperada, como há um século – quando foi reinaugurada – e, mais recentemente, depois da enchente de 1966.

Sobre ela, o historiador Flávio Guerra tem uma crônica interessante, em que diz, a certa altura: “Havia uma outra ponte, do outro lado da ilha, ligando-a com o bairro do Recife e tentando disputar com ela os toques históricos de originalidade. Haviam-na transformado em mercado público, atulhado de lojinhas rendendo dinheiro para a Coroa. Mas era alçada, algo dona da sua importância para o erário régio. Um local somente para negócios. Porém, a Ponte da Boa Vista, não. Essa era algo frívola. Viveu até 1873 sem segredos de técnicos ou preocupação estética, mas oferecendo muita importância. Seus fundamentos eram de madeira, mas tinha de cada lado uma fila de banquinhos, onde os transeuntes descansavam, sobretudo à noite, gozando a fresca do rio, apreciando o seu luar, batendo um bom papo com conhecidos”.

De tal maneira os banquinhos da Ponte da Boa Vista eram procurados, que raramente se encontrava um lugar vazio e o local terminou por se transformar em “ponto de encontro”. Um jornal humorístico, o Diabo-a-Quatro, publicou, certa vez, esta quadra:

“Sou membro, mas não de fora,
Lá do Clube Popular,
E infalível assinante
da Ponte da Boa Vista.
onde costumo prosar…”.

É ainda Flávio Guerra quem diz: “Enquanto a ponte do lado do Recife oferecia o aspecto curioso das lojinhas, onde se vendiam os chapéus, as sandálias, os borzeguins, a fazenda, o xarope, as miudezas, a da Boa Vista, ornada pelos seus banquinhos convidativos, era propícia aos namoros, aos cochilos, aos cavacos. Era poética. Lá embaixo, correndo sereno, o rio gulosamente ia papando as estrelas, no dizer do poeta”.

À época, passaram à noite o escravo com o barril d’água; o cavalo do matuto carregando açúcar ou farinha de mandioca; a cadeirinha da moça que voltava do “arruar”; o pálio com o Nosso Pai, para dar a extrema-unção a algum moribundo, e uma negra, na subida da ponte, vendia bolos, felós e alfinins.

Um belo dia, o lastro de madeira da ponte estalou e várias tábuas cederam. A ponte se viu, de repente, abandonada. Quem tinha coragem de sentar nos banquinhos? Terminou sendo fechada e demolida. Da Inglaterra viria, em seguida, uma ponte mais moderna, contratada pelo governador da província, Henrique Pereira de Lucena.

Por ela, hoje, passam milhares de pessoas, a caminho das compras e do trabalho. Às vezes, indiferentes, é talvez para eles uma via de acesso como outra qualquer. Uma ponte como tantas, empestada de mendigos e camelôs (para os camelôs, sempre se encontra uma solução. Mas os mendigos continuam na longa e desesperada espera, deprimindo e angustiando aqueles que passam pela velha ponte.

A Boa Vista ainda está de pé, tantos anos após decorridos por sobre o Capibaribe quase sempre poluído, frentes aos velhos prédios da ruas Nova, Imperatriz e Aurora – frente a uma paisagem ameaçada de desaparece, o tradicional devorado pelo progresso. A ponte continua de pé, límpida, íntegra, inviolável dentro do presente eterno da nossa história.