Caro amigo que desembarcou no Porto do Recife neste ano de 1858: não será preciso caminhar muito para saciar sua fome e a sua sede. A poucos metros do seu navio está a Lingueta, o trecho do cais ocupado por hotéis e restaurantes administrados por estrangeiros e onde as boas famílias da terra vêm passear. Quer tomar um chope? Recomendo então o Rapids Chop’s, do famoso barman inglês John Sayle. Quer comida francesa? Então pode ir ao Restaurante Français, do cozinheiro Auguste, que inclusive anunciou no Diario de Pernambuco. Ou então no Restaurant Français Hebrard, que fazia publicidade toda em francês, destacando seu endereço como Rue du Trapiche-Neuf. Um lugar para pernoitar? Vá ao Gran Hotel de L’Univers ou o Hotel d’Europe.
Esta volta no tempo à capital pernambucana foi para ressaltar como os estrangeiros davam as cartas no comércio, influenciando também os hábitos e costumes dos nativos. O primeiro levantamento da Associação Comercial de Pernambuco, fundada em 1839, já apontava que 71% das 75 firmas grossistas existentes no Recife eram de não brasileiros, sendo 22 inglesas, 10 portuguesas, oito francesas, sete alemãs, três norte-americanas, uma holandesa e uma suíça. O varejo tinha o predomínio português.
No dia 20 de julho de 1969, o Diario de Pernambuco publicou reportagem assinada por Flávio Guerra apresentando detalhes da presença europeia no Recife. Ingleses e franceses, principalmente, não se limitaram a apenas vender produtos e administrar estabelecimentos. Também atuaram na modernização da cidade e também na parte artística.
Foi um inglês, Philip F. Needhan, que encabeçou uma reforma no cais de desembarque do Porto do Recife. Louis Léger Vauthier revolucionou a arquitetura urbana. Mas muitos anônimos, entre cabeleireiros e costureiras deram a sua contribuição para tornar a capital pernambucana mais cosmopolita.
Passados mais de 45 anos, a reportagem de Flávio Guerra continua atual por resgatar aspectos que explicam um pouco os nossos (ou a falta de) modos. Se só nos faltava “cuspir à francesa”, como ironizou um crítico da época, agora fazemos isso da forma brasileira mesmo.
E antes que perguntem: o Cais da Lingueta tornou-se parte do Marco Zero.