Comer carne, ingerir bebida alcoólica, olhar-se ao espelho, usar maquiagem ou perfume e até mesmo tomar banho (e ver o próprio corpo nu). Até bem pouco tempo, estas ações eram evitadas durante o período da Semana Santa no Nordeste. Na lista também se incluía namorar, cantar, dançar e até assobiar, por serem sinais de alegria no período em que Jesus sofreu. Relações sexuais, então, eram um pecado gravíssimo, principalmente na sexta-feira, dia da Paixão. Segundo o etnólogo e folclorista Mário Souto Maior, os homens – solteiros ou casados – ficariam impotentes para o resto da vida. As mulheres perderiam a capacidade de gerar filhos.
Estas revelações foram feitas ao Diario de Pernambuco em 1 de abril de 1979, quando Souto Maior divulgava o livro Nordeste: a inventiva popular (editora Cátedra), no qual dedicou um capítulo ao roteiro místico e folclórico da Semana Santa em uma cidadezinha do Nordeste até pouco depois da primeira metade do século 20. O alerta de que o modernismo esvaziou o sentido religioso da Paixão nordestina havia sido feito dois anos antes, em 8 de abril de 1977, justamente a sexta-feira da morte de Cristo.
“Logo no Domingo de Ramos uma atmosfera mítica envolvia toda a cidade, fazendo com que as tardes ficassem ainda mais longas e tristes. As velhas beatas, com seus longos vestidos, e as filhas de Maria vestidas de branco – mangas compridas, golas arredondadas – com seus terços de alvas contas, andavam rua abaixo e rua acima, como se caminhassem sobre nuvens, tão impregnadas de fé que estavam”, ressaltou Souto Maior.
A lembrança dos dois ladrões crucificados ao lado de Cristo fazia com que os comerciantes pesassem corretamente seus produtos, sem roubar nos quilos de bacalhau da Noruega ou no peixe seco vindo não se sabe de onde. O cinema fechava as portas, recomeçando a funcionar no domingo de Páscoa, com a Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ou então filmes mudos clássicos, como Rei dos reis (1927), dirigido por Cecil B. DeMille.
A sexta-feira era o dia da reza, com a exposição da hóstia consagrada e a Via-Sacra e a procissão do Senhor Morto, às 15h. Na volta a igreja, as famílias beijavam a imagem de Cristo e deixavam uma importância em dinheiro, retirando uma moeda de vintém de cobre para guardar a fim de que nunca faltasse os meios de subsistência. O apurado era contado à meia-noite pelo padre, assim que fechasse a igreja.
Sábado era o dia da queimação do Judas, boneco de pano vestido com roupas velhas e recheado com bombas juninas para explodir quando queimado. Ele tinha que ser vigiado para não ser roubado. O testamento era lido em público e as pilhérias às vezes podiam acabar em brigas e até mortes.
No domingo, depois da procissão da ressurreição e da santa missa, a vida voltaria ao normal, com o cinema funcionando, baile à noite e os comerciantes da bodega voltando a roubar no peso.
O Diario voltou a tratar das tradições nordestinas no período da Semana Santa em 4 de abril de 1980, em reportagem assinada por outro Souto Maior, o repórter Moacyr. Ele destacava que os padrões alimentares mudavam nesta época, dando margem aos chamados “almoços de jejum”, que conduziam seus participantes a objetivos opostos à limitação de comida e bebida. Era a ocasião para refeições de abundantes pratos próprios da ocasião, como peixadas, bacalhoadas, quibebes. A única solidariedade ao sofrimento de Nosso Senhor era a proibição do consumo de doces.