Rito de votação foi anunciado ontem: começa pelo Sul, depois Centro-Oeste, Sudeste, Nordeste e Norte.
Vandeck Santiago (texto)
Gustavo Lima/Câmara dos Deputados (foto)
Informa o noticiário que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), planeja começar a votação do impeachment pelo Sul, deixando os parlamentares do Norte e Nordeste para o final. A base do raciocínio é que os parlamentares mais propensos a votar contra o impeachment seriam dessas duas regiões. A ideia por trás da manobra é criar logo um placar desfavorável à presidente Dilma Rousseff, de forma que ao chegar a vez dos deputados do Norte/Nordeste eles se sintam pressionados a votar da mesma forma.
Este rito de votação foi confirmado ontem. É desrespeitoso com os parlamentares nordestinos e nortistas. Duvido que, sob qualquer hipótese, Eduardo Cunha (ou qualquer outro presidente da Câmara) cogitasse fazer a mesma coisa com deputados do Sudeste ou do Sul. Porque, na prática, ela discrimina, rebaixa e joga suspeição sobre os parlamentares que intenta colocar no fim da fila para votar. Consciente ou inconscientemente, também cria uma divisão entre as regiões, em um momento e em um ambiente propício a preconceitos e vilanizações. Ontem, Cunha negou que pretenda favorecer um dos lados com a medida.
O pior é que alguns dos parlamentares mais ativos na luta pelo impeachment são exatamente do Nordeste – de Pernambuco, por exemplo, temos dois que se enquadram perfeitamente nesta característica: Bruno Araújo (PSDB) e Mendonça Filho (DEM). Não há dúvidas sobre a posição do PSDB em relação ao impeachment, não é? Pois bem, o líder da bancada do PSDB na Câmara é Antonio Imbassahy – trata-se de um parlamentar do Rio, SP ou RS? Não, é da Bahia. O líder da bancada do DEM, Pauderney Avelino, é do Rio, SP ou RS? Não, senhores; é do Amazonas. O líder do PSB, que votou favorável ao impeachment na comissão, é Fernando Coelho Filho – que é de onde? De Pernambuco. E o líder do PRB, partido que fechou questão a favor do impeachment, é de onde? Chama-se Márcio Marinho, e é da Bahia.
Fiquei surpreso em não ter visto, das bancadas nordestina e nortista, nenhuma reação enérgica contra a medida. São representantes de nada mais nada menos que 16 estados brasileiros, e em conjunto têm 216 dos 513 deputados da Câmara. Na bancada nordestina são 151 parlamentares, cerca de um terço do total da Câmara. Não quero prejulgar, mas imagino que o plano desejado por Eduardo Cunha é reflexo também da falta de afirmação dessas bancadas. Lembro de uma história que o professor de Harvard e filósofo Mangabeira Unger me contou, em entrevista, da época em que era ministro da Secretaria de Ações Estratégicas no segundo governo Lula e preparava o estudo “O desenvolvimento do Nordeste como projeto nacional”. Para fazê-lo, ele viajou por diversos estados do país, encontrou-se com governadores, lideranças políticas diversas, representantes de movimentos sociais. Foi ele quem me alertou para o tamanho da bancada do Nordeste: “É um terço da Câmara!”. Com esta dimensão, era para ter muita influência na Casa, se estivessem unidos e com uma agenda comum. Mas Mangabeira – foi ele próprio quem disse – marcava reuniões com a bancada e poucos compareciam. Tratava-se de formatar um projeto de desenvolvimento para a região, com possibilidade de efetivar algumas medidas, se tivesse apoio político. O estudo hoje é apenas uma obra esquecida sobre a região em alguma estante do governo. Mas Mangabeira – que voltou a ocupar o mesmo cargo no governo Dilma, de fevereiro a dezembro de 2015 – continua convicto de uma coisa: “Não existe solução para o Brasil sem solução para o Nordeste”.
É claro que não pode ter a ilusão de que sejam homogêneos os interesses de 151 parlamentares, de diversos partidos e estados. Mas é possível ter uma agenda comum, capaz de mobilizar todos e ser representativa das necessidades da região. O Nordeste é a região com os piores indicadores sociais do país, teve grandes conquistas nos últimos anos, foi destinatária de grandes projetos e investimentos públicos e privados, é exemplo de uma desigualdade regional que precisa de políticas específicas para ser enfrentada – tudo isso torna o Nordeste região merecedora de atenção específica. Na opinião de Mangabeira, o Nordeste deveria “rebelar-se” para conquistar o seu projeto nacional de desenvolvimento. Essa conquista nunca vai acontecer enquanto seus parlamentares estiverem sendo empurrados para o fim da fila.