No mês que marca o combate ao câncer infantojuvenil, eis a história da mãe Ana Branco.
Silvia Bessa (texto)
Ricardo Fernandes (foto)
Sabia, na sua rotina diária de cuidados de uma filha especialíssima, que coração de mãe é terra que nem todos pisam. Então, inquieta, tratou de usar seu arado para ajudar a quem precisava. Ana Branco emprestava os ouvidos às famílias com crianças e adolescentes em tratamento de câncer. Num olhar, garantia a cumplicidade dos encontros. Cercada de sutilezas, dava-lhes o ombro para amparar choros incontidos nos momentos mais íntimos ou improváveis. Com as famílias, sofria junto. Aos poucos, a roupa de observadora ficou justa para ela. Não se sabe quando, mas Ana passou a ser admirada e vestiu-se como uma mulher reconhecida por transformar o meio onde vivia – e vive.
Ana tinha rosto familiar para muitos que circulavam pelos corredores de hospitais do Recife e via histórias que se assemelhavam à dela. “Lembro que tinha noites que saía da minha casa com Ricardo, meu marido, para pegar meia ampola de remédio doada por uma família com filho em hospital particular para aliviar a dor de um paciente internado em unidade pública”. Costumava ser orientada por profissionais de saúde para o transporte da droga, aliviando enjoos de pequenos pacientes que sonhavam em seguir em frente com radioterapia ou quimioterapia. Era, à época, diretora e voluntária do Núcleo de Apoio à Criança com Câncer (Nacc), com o qual colaborou em tempo quase integral por oito anos.
Ana é uma mulher de muitas palavras, sorrisos e entrega. Chegava a levar para casa pacientes do interior para passar uma noite sobre um colchão mais macio. “Ia contra a regra, mas eu me envolvia e a quebrava vez por outra”. Não ajudava apenas os mais pobres. Teve uma mãe que, certo dia, precisou viajar para os Estados Unidos e deixou a determinação: “Só quem pode entrar no quarto de fulano é Ana”. A concessão foi bem usada junto à criança, lembrada pelo nome até hoje. “Acho que a mãe pensava assim: ‘Essa daí conhece minha dor’”. Por certo. Ana era (é) especialista no que se trata de câncer na primeira infância. Tem resposta para perguntas de natureza diversa. Quando não, as busca nem que seja no subjetivismo do apoio moral. Sua Natália tem agora 27 anos; e Ana ainda usa oportunidades mínimas para tratar o máximo de inclusão social, de preconceito para com pacientes com câncer e minimizar dúvidas, inquietudes e sofrimentos alheios.
A história de Ana Branco não teve início em Natália, a segunda filha, diagnosticada com má-formação congênita assim que nasceu e que, aos dois anos, passou a se tratar de um meduloblastoma, tipo de tumor cerebral. Natália – vítima de múltiplos cânceres e apelidada do estado como “a paciente lendária” – abriu novos caminhos para Ana.
A mãe Ana tinha uma rotina comum, de classe média. Começou a trabalhar como telefonista aos 16 anos, na Cooperativa de Crédito dos Plantadores de Cana. Virou bancária. Vivia tratando de números, envolvida na área contábil. Teve Rafaela, a primeira filha (hoje com 32 anos). Quando Natália chegou, a rotina da casa foi revolucionada. A menininha deu-lhe novos desafios. “Pago um preço por minha vida, mas minha vida é essa”. Reinventou-se depois, de novo.
Até que um neurologista, Dr. Hildo Azevedo, recomendou: “Quero que você vá conhecer um lugar: o Nacc”. Ana diz ter se apaixonado. Fez da rotina no Nacc, dividida com os cuidados com Natália, um sacerdócio. Agarrou a própria causa e acolheu a dos outros. Os corredores do Hospital do Câncer poderiam até narrar. “Cansei de ir lá. Não ia para tratar de Natália. Ia por causa do Nacc”.
Ana deixou de fazer parte de instituições formalmente, mas mantém uma espécie de sacerdócio como ouvidora de quem precisa de um ombro ou mesmo de um incentivo para lidar com uma criança ou adolescente com câncer. Ela é o retrato da face oculta dos que mantém o ano inteiro a essência da campanha Setembro Dourado. O movimento valoriza a conscientização do combate ao câncer infantojuvenil e defende o diagnóstico precoce de câncer em crianças e adolescentes no Brasil. Confundido com outras enfermidades, o câncer muitas vezes tem diagnóstico encoberto. Estima-se que hoje 70% dos casos da doença na infância e adolescência são curáveis e podem ser descobertos no início, assim como Ana descobriu o caso de sua Natália aos dois anos.