13-10

 

Doenças, falta de água, de comida, de remédio, de futuro. Assim, ontem foi só mais uma quarta-feira.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

A urgência em viver muito e intensamente, marca dos dias de hoje, traz a reboque a perda de importâncias quase irrecuperáveis, que em algum tempo da vida farão muita falta. Uma das mais óbvias é a da capacidade de refletir. Dia após dia repetindo como um mantra o desejo de ser feliz – sem nem mesmo saber em que consiste a felicidade -, deixamos de lado até o que nos diferencia como humanos, o dom de enxergar o outro, de poder ajudá-lo em suas necessidades mais extremas apenas entendendo que gostaríamos de também ser socorridos quando tragédias batessem à porta. Simplesmente nos atemos à tarefa de resolver nossas próprias vidas, com o discurso mental (e outras vezes, verbal) de que isso já está de bom tamanho. Enquanto pensamos assim, o filósofo australiano Roman Krznaric sai pelo mundo defendendo suas maiores convicções em torno de uma sociedade que deve olhar para os lados: “A verdadeira revolução é colocar-se no lugar do outro”, ensina ele nas palestras. No entanto, ontem, dia de cinemas, parques e lojas cheios parecia absolutamente fora de contexto perguntar se alguém lembrava que no Haiti, depois da passagem devastadora do furacão Matthew, havia milhares de crianças sem água, comida, remédio, futuro. Ou mesmo se fazia ideia da alegria que elas poderiam sentir se recebessem um brinquedo ou um abraço, especialmente no dia de ontem. Antes, era a inteligência que nos distanciava dos animais; agora é o que nos distancia uns dos outros, na medida em que a usamos apenas para ampliar nossa zona de conforto.
As reflexões do consagrado escritor Oscar Wilde produzem sempre inquietação, como é comum em tudo que nasce de mentes privilegiadas. Se ele estava certo ao dizer que “a melhor maneira de tornar as crianças boas é fazê-las felizes, o que se pode esperar em termos de futuro para as do Haiti é conhecerem de perto a violência e virar presas fáceis dela, o que, aliás, já começou a acontecer para muitas. Desde 2010, quando o terremoto arrasou a capital Porto Príncipe e áreas próximas, matando mais de 300 mil pessoas, traficantes de seres humanos encontraram território o mais propício para agir, beneficiados ainda pelo desgoverno e a corrupção reinantes. Milhares de crianças desapareceram, milhares de órfãos se viram entregues à própria sorte, apesar mobilização internacional para socorrê-las. Foram vítimas de maus-tratos, de abusos e viram que tudo pode ser ainda pior. Se é que é possível.
De verdade, sobre ajuda e gestos fraternos não se teoriza – ou eles existem ou as realidades jamais serão mudadas, embora, no caso do Haiti, não baste apenas o envio de quantias astronômicas. É preciso criar um sistema que permita torná-las inacessíveis aos corruptos e instituições oportunistas, sem compromisso com a quase impossível tarefa de tirar o país da miséria em que vive mergulhado. Depois do terremoto de 2010, mesmo os EUA falharam na tentativa de contribuir para a generosa ajuda humanitária dada pelo mundo se transformar em promessa de futuro: até as organizações não governamentais às quais o desafio foi confiado sucumbiram às tentações de levar a melhor.
O que importa, entre tantos aspectos a considerar, é que ontem não era Dia das Crianças para as crianças do Haiti. Abaixo e acima da Linha do Equador cabia uma reflexão – como é bem-vinda a qualquer hora – não sobre por que o mundo se mostra tão desigual, mas sobre até quando será indiferente assistir a pessoas de tão pouca idade vivendo em condição para lá de degradante. Aqui, não faltará quem apareça com o perverso argumento de que deveríamos mesmo era olhar para muitas das nossas crianças submetidas a situações dramáticas de descaso. Não, no Brasil, os flagelos que ameaçam a infância apresentam outros contornos, embora também preocupantes. Mas, afinal, quando se trata de defendê-las, que importância pode ter a geografia? Quando o assunto é este, não existe país – existe somente compaixão e a oportunidade de mostrar que as entendemos como algo muito próximo do divino.