21-10

Outra passeata gigantesca marchou pelo centro de Buenos Aires, ontem, para pressionar governo a agir.

Luce Pereira (texto)
Eitan Abramovick/AFP (foto)

Aquelas diferenças que dão a impressão de deixar argentinos e brasileiros em terrenos bem distintos são, de fato, limitadas às disputas nos gramados e arenas desportivas. Fora dali, há distâncias verdadeiramente importantes, claras e com placar bem favorável a eles. No caso das estatísticas em relação a feminicídio, ganham com folga e mesmo tendo números bem menos dramáticos vão às ruas, esperneiam, se mobilizam, dando lições sobre como abandonar a zona de conforto e exigir do poder público que faça a sua parte. Brasileiros, não: se dizem impactados com a repercussão de muitos dos casos assombrosos, mas daí a resolver sair de casa para protestar, quantas vezes forem necessárias, é outra conversa. Os vizinhos estão em pânico, pois afirmam que nunca se matou tantas mulheres na Argentina (duzentas por ano), mas o Mapa da Violência 2015 mostra que, nós, sim, é que deveríamos estar colocando governo e autoridades contra a parede: quando saiu o estudo, em novembro, o Brasil aparecia como o quinto do mundo, atrás apenas da Rússia, Guatemala, Colômbia e El Salvador, apresentando taxa de 4,8 mortes por cem mil mulheres. Os hermanos, no entanto, ocupavam apenas a 28ª colocação (1,4 mortas por cem mil).
Independentemente do que falta para o Brasil ser um país verdadeiramente preocupado com o crescente número de assassinatos de mulheres, a Argentina não quer diminuir a distância que separa os dois, neste quesito. Desde 3 de junho de 2015, resolveu começar uma luta sem trégua contra a morte de jovens, a partir do crime brutal de que foi vítima Chiara Páez,14 anos, grávida, espancada até o fim e enterrada no quintal da casa dos avós do namorado, Manuel Vallejos, 16, que assumiu a autoria do homicídio e foi preso. O caso aconteceu na província de Santa Fé, servindo de bandeira para a campanha Ni Uma Menos (Nem Uma Menos) e para a passeata mais numerosa da história do país, naquele dia, contra a violência provocada pelo machismo.
Porém, mesmo a sociedade somando forças para conter a onda de feminicídio, os crimes continuam a acontecer e sempre contra mulheres muito jovens. Só neste mês foram registrados 20, o que corresponde, em média, a um a cada 23 horas. Os argentinos não se conformam.  Ontem, ocuparam mais uma vez as ruas centrais de Buenos Aires e de outras províncias, por uma hora, para gritar contra a escalada deste tipo de violência, que tem tirado o sono da população. Vestidas de preto e sem dar a menor importância para o frio – atípico, nesta época -, dezenas de milhares gritaram palavras de ordem pedindo justiça, ainda sob impacto da morte de Lucía Pérez, 16, estuprada e assassinada em Mar del Plata, recentemente. Em prédios públicos, escolas e ministérios a repercussão do protesto foi enorme, enquanto jornalistas, artistas e políticos conhecidos participavam da marcha, que recebeu a solidariedade de um grupo de manifestante na Avenida Paulista. O movimento deve ampliar a participação popular contra os feminicídios no Brasil durante protesto marcado para o dia 25.
Como a imagem das Mães da Praça de Maio produziu sempre grande impacto sobre a parcela de argentinos mais politizada, as mães que perderam filhas para a violência de gênero também comoveram a opinião pública, vestidas de preto, sob a chuva e o frio. Chorando e portando fotografias das vítimas, pediam justiça, sem parar, enquanto os reflexos da mobilização chegavam quase que instantaneamente ao Senado. Os congressistas aprovaram, por 54 votos contra dois, projeto de reforma para garantir que existirá paridade no Parlamento, a exemplo do que se vê em outros países. Mas o peso maior do inconformismo geral está indo parar nas costas do presidente Maurício Macri, cujo discurso aposta na educação como saída, mas, na prática, recebe críticas por não destinar fundos suficientes para ajudar no combate ao problema. Nisso, Brasil e Argentina  se entendem às mil maravilhas.