Sem condições de comprar alimentos, pessoas pobres atendidas por ONG abandonam tratamento.
Luce Pereira (texto)
“Não é a pornografia que é obscena. É a fome que é obscena”. O autor da frase, o português José Saramago, teria, nestes dias de extrema necessidade por que passa o Haiti, razões de sobra para repeti-la. Na verdade, por vários motivos ela poderia sugerir uma série de reflexões, mas, de tão condicionados a conviver com faltas, nos acostumamos e perdemos a capacidade de questionar os estragos produzidos enquanto duram. Aqui mesmo, tão perto, o fantasma da fome se encarrega de tornar insuportável uma rotina que por si só já é das mais sofridas – a de pessoas portadoras do vírus HIV, em situação de vulnerabilidade social, que não podem prescindir do tratamento garantido pela ONG Gestos. O que acontece é que, sem comida em casa, abandonam os medicamentos – tomados juntos com as refeições, para minimizar os efeitos colaterais – e ficam completamente expostos aos perigos da doença. A ONG, que por sua vez sobrevive a partir de financiamentos internacionais, e licitações, não dispõe de recursos para prover a alimentação na quantidade adequada e apela à velha e conhecida solidariedade do povo,, afinal, quando o poder público não reage, é sempre ele a tentar reduzir as consequências de realidades dramáticas. Não fosse essa empatia, que nasce da consciência de se colocar no lugar do outro, a fome já teria assumido proporções possíveis de fazer corar qualquer sociedade, ainda mais esta, orgulhosa de produzir os maiores milagres tecnológicos.
Poucas coisas e situações humilham mais do que a fome, porque, em qualquer proporção, reduz a dignidade ao tamanho da saciedade. No caso da clientela da Gestos – que faz, em média, cem atendimentos por semana – não dispor de segurança alimentar significa ver reduzidas ao extremo as chances de sobrevivência: não comendo adequadamente, não podem chegar a resultados terapêuticos satisfatórios. Para eles, portanto, comida não é apenas básico – é vital. No entanto, as circunstâncias de vida da maioria não levam a outro caminho senão o da busca por solidariedade, pois, estatisticamente, já se sabe que o número mais expressivo deles está fora do mercado de trabalho, dependendo de mãos estendidas para sobreviver. Em relação ao círculo de atendidos pelas ações da ONG, o cenário é igualmente grave: apenas 33% têm o ensino médio completo e a maior parte não dispõe de outra renda a não ser o salário mínimo.
Num mundo tão desigual como o de hoje, justifica-se plenamente a tese de que “setenta por cento da humanidade ainda passam fome enquanto trinta por cento fazem dieta”. O problema estaria, portanto, no fato de os 30% não se mostrarem minimamente interessados em equilibrar a conta, transformando desperdício em ajuda. Falta consciência não somente dos governos, mas, também, da sociedade, que não se envolve como fizeram os dinamarqueses ao virar referência no combate à tentação de se continuar jogando comida no lixo. Ela faz tanta falta aqui que pode funcionar como sentença – de vida ou de morte –, razão pela qual dói tanto a conclusão da ONU de que um terço dos alimentos produzidos não acabam no estômago do mundo, mas em lugares onde nunca poderão ser aproveitados.
Discussões à parte sobre o papel de cada um na tentativa de modificar este estado de coisas, a ONG Gestos precisa de ajuda para fazer com que cerca de 400 pessoas, a cada mês, possam continuar recebendo tratamento adequado na luta contra a Aids. Há uma conta bancária disponível para doações (agência 3108-9, conta 9071-9 / Banco do Brasil), mas a instituição também considera bem-vindas ajudas em forma de cestas básicas e/ou material de higiene, que podem ser entregues no seu endereço: Rua dos Médicis, 68, bairro da Boa Vista. E porque nunca é demais lembrar a lucidez de dom Helder Câmara: “A fome dos outros condena a civilização dos que não têm fome.”