Imortal maranhense, autor do Poema sujo e de outras grandes obras-primas, faleceu vítima de pneumonia.
Luce Pereira (texto)
Guito Moreto/Agência O Globo (foto)
Eele se foi Na vertigem do dia, como sugere o título de um dos seus livros mais queridos, chegado a nós em 1980. Que ano este, no qual ainda pisamos: não bastasse a grossa camada de desânimo, que só se adensou com os desastres políticos e econômicos, um grande poeta vai embora. Outro, da mais fina estirpe da literatura brasileira, como se neste exato momento poetas não tivessem a importância redobrada, pelo dom de reacender a chama, fustigar, não deixar dúvidas sobre que amanhã vai ser outro dia. O maranhense Ferreira Gullar (ou José Ribamar Ferreira), dono de uma extensa lista de habilidades intelectuais (ensaísta, teatrólogo, tradutor, crítico, cronista, memorialista …), era o que mais faz falta nos dias de hoje – um questionador, como se autoproclamava, a ponto de demorar 20 anos para decidir se queria mesmo fazer parte da Academia Brasileira de Letras, o que acabou acontecendo em 2014. Dizia que não era uma pessoa com “espírito acadêmico institucional”, do mesmo jeito que, visto como um dos maiores pensadores de esquerda do país, não aceitava o Partido dos Trabalhadores (PT) no poder. Para virar imortal – e desses que se empenham em participar ativamente da rotina de debates, encontros e reuniões da casa – foi necessária uma persuasão em bloco de outros amigos já com assento na ABL.
Ele era assim, um sujeito brilhante, reservado e cheio de belas convicções, o que não o impedia de viver como cidadão comum entre outros tantos milhões do Rio de Janeiro, cidade que adotou desde os anos 1950. Ontem, quando a notícia da morte por pneumonia em um hospital de Copacabana se espalhou pelo país, confirmada pela neta Celeste, uma amiga me ligou para falar da surpresa e da emoção que sentiu ao vê-lo entrar no metrô, sem o mais leve sinal que o distinguisse de todos no vagão, a não ser pelo incomum tipo físico – alto, magro, cabelos brancos inteiros, finos e escorridos, rosto vincado e nariz proeminente, sobrancelhas grossas, lembrando um índio andino. Seguiu em pé e, cordial, recebeu com muita simpatia os cumprimentos de minha amiga e de outro passageiro. Depois desceu na estação Botafogo, misturando-se ao burburinho dos tempos de Jogos Olímpicos e deixando para trás duas pessoas com a sensação de haver ganhado o dia.
Os dramas humanos vividos por Gullar estiveram sempre à altura da poesia dele, como a confirmar a tese de que para conseguir expressar-se com beleza é preciso um bocado de tristeza, parafraseando um famoso samba de Vinícius de Moraes, outro grande poeta. Exilado, vivendo longe da família em alguns países, incluindo Moscou, levou esse tempo tentando reunir suas maiores importâncias, sobretudo a família, antes de terminar o impedimento político que o mantinha, àquela altura, em Buenos Aires. Foi lá que descobriu a esquizofrenia do filho Paulo, aos 17 anos. Um sofrimento prolongado, com tratamentos infindáveis – e depois a morte, aos 32. Quem há de esquecer o poeta lendo o texto Internação? “Ele entrara em surto/ E o pai o levava de carro para a clínica ali no Humaitá numa tarde atravessada de brisa e falou (depois de meses trancado no fundo escuro de sua alma): “Pai o vento no rosto é sonho, sabia?”. Nem o outro filho, Marcos, escapou da doença. “Isso tudo é normal, é humano”, disse sempre o pai, firme, crítico ferrenho da foma como o poder público, sobretudo em tempos mais recentes, tratou a questão da saúde mental no Brasil.
Nos últimos cinco anos de vida, o brilho de Ferreira Gullar foi realçado com as honras que se reservam aos grandes escritores de língua portuguesa. Em 2010, recebeu o maior de todos os prêmios, o Camões, pelo conjunto da obra e, ainda, o título de Doutor Honoris Causa da Faculdade de Letras da UFRJ. No ano seguinte, incorporou à sua respeitável coleção o Jabuti de melhor livro de ficção, com Em alguma parte alguma (o anterior veio em 2007, Resmungos), e em 2014 passou a ocupar a cadeira de número 37 na ABL. Despediu-se com Autobiografia poética e outros textos, publicado em 2015, porém movido pela “esperança de que a poesia tivesse a virtude de, em meio ao sofrimento e o desamparo, acender uma luz qualquer, uma luz que não nos é dada, que não desce dos céus, mas que nasce das mãos e do espírito dos homens”.