Maior líder político de Pernambuco deixou legado de luta contra a desigualdade social.
Vandeck Santiago (texto)
Edvaldo Rodrigues (foto 16/09/79)
O diplomata britânico John Morgan encontrou-se com o então governador Miguel Arraes e dias depois, em 30 de dezembro de 1963, enviou relatório para os seus superiores sobre as impressões que tivera. “O Dr. Miguel Arraes não é um intelectual, mas passa a impressão de inteligência e de extrema perspicácia”, escreveu Morgan. “Seus olhos são semelhantes aos de um corretor da Bolsa de Valores. Sua astúcia camponesa, coberta por uma fina camada de falso bom humor, faz lembrar Mr, Kruschev de dez anos atrás. Resumindo: ele não é o tipo de pessoa que gostaria de ver o Reino Unido fazer tentativas para ‘prestigiar’ neste momento.”
Outro documento interno, um comunicado do Departamento de Estado dos EUA, é igualmente taxativo ao referir-se a posições do governador: “Arraes é um caso perdido. Não se muda as pintas de um leopardo”.
No Brasil, a situação não era muito diferente. O general Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército, sediado no Recife, declara em suas memórias (Encontro com o tempo, publicada em 1965): “O instinto herdado de meu pai, um caçador de onças, fez-me ver nele [Arraes], desde a primeira hora, um inimigo. Declarei-lhe guerra desde que o conheci”. Com a deposição e prisão de Arraes, Justino comemorou: “Isolei-o, afinal, na solidão de um penhasco perdido no meio do Atlântico” (alusão à prisão em Fernando de Noronha).
Dois motivos explicam estas histórias: o primeiro é que Miguel Arraes era um político que, onde quer que estivesse, todos sabiam de que lado ele estava. O segundo motivo é que ele atuava consciente da luta que forças antagônicas travam pelo controle do Estado, e tomando posição nesse combate. Todos sabiam quais forças ele defendia. Todos sabiam que interesses ele defenderia chegando ao poder. Todos sabiam que ele nunca seria cooptado (compreensão que o comunicado do Departamento de Estado norte-americano define muito bem, ao afirmar que “não se muda as pintas de um leopardo”). Na história recente nacional, lembro-me de uma meia dúzia, no máximo uma dezena, de líderes que se enquadram nesse perfil. Gente como ele e como Leonel Brizola, para acrescentar um outro exemplo.
Em seu discurso de posse como governador, em janeiro de 1963, ele fez uma frase que define a sua trajetória e posição política: “Pois que ninguém se iluda: assim como não conseguiram me transformar em agitador e incendiário, também não conseguiram e jamais conseguirão me transformar em um bom moço, acomodatício aos privilégios que sempre combati”. Arraes atuava dentro da legalidade, mas esticando a corda da legalidade na defesa dos – permitam-me uma expressão gasta – mais necessitados de justiça.
O Golpe civil-militar de 1964 atropelou sua carreira – assim como atropelou a de Celso Furtado, Josué de Castro, Paulo Freire, Francisco Julião, todos engajados na luta política e social no Nordeste. Claro que ele retornou 15 anos depois, que ainda se elegeu governador mais duas vezes, que criou a liderança Eduardo Campos e que exerceu influência na política nacional. Não era a mesma coisa, porém. 1964 era o auge de sua atuação, e o momento em que estava maduro para protagonismo nacional – este era o momento em que pessoas como ele, e como Celso Furtado, Josué, Paulo Freire e Julião, mais poderiam ter ajudado o Brasil, porque ali as forças que eles representavam poderiam almejar o controle do Estado.
Nas eleições de 1965, por exemplo, Arraes era um nome consistente que a esquerda dispunha para a Presidência (Brizola, cunhado de João Goulart, só poderia ser candidato se houvesse modificação na legislação que impedia familiares do presidente de concorrer ao cargo). Arraes retornou ao Brasil com a anistia, em 1979. Não conseguiu (diferentemente de Brizola, no Rio) ser candidato a governador em 1982; só concorreu em 1986, quando se elegeu. Tomou posse em 1987, e dois anos depois veio a primeira disputa presidencial pós-ditadura. Aí já era tarde demais para almejar sonhos presidenciais; o cavalo selado já havia passado.
Arraes navegou contra a correnteza, enfrentou forças muito poderosas, locais e internacionais. Hoje, no dia do seu centenário, convém atestar que o legado que ele deixou não é de desânimo, mas de esperança. Não é de resignação, mas de inspiração. A luta que ele travou continua.