O cardeal morreu aos 95 anos, depois de uma vida dedicada aos direitos humanos e à democracia.
Luce Pereira (texto)
Rovena Rosa/Agência Brasil (foto)
Dom Paulo Evaristo Arns, o cardeal da esperança, deve ter vivido seus últimos dias se perguntando sobre o destino daquela bela construção à qual dedicou a maior parte de sua vida. O edifício chamado direitos humanos, que exigiu de milhares de pessoas décadas de esforço e coragem para ser erguido, segue em ruínas mas o religioso, de 95 anos, foi embora, na última quarta-feira, certamente agradecido por não ver-lhe o fim. Ter os pés fincados no social parecia ser um bem de família. O irmão de Zilda – fundadora da Pastoral da Criança e morta no terremoto de janeiro de 2010, que arrasou a capital do Haiti, Porto Príncipe – era um entusiasta da possibilidade de ver a instituição à qual pertencia tomar-se cada vez mais próxima do rebanho. Entre os primeiros da fila para ajudar a fortalecer aquela primavera da Igreja, nos anos 1960, dom Paulo esteve sempre próximo dos nomes do alto Clero (entre eles dom Helder Câmara) que partilhavam os ideais de uma Teologia da Libertação, desde o lançamento dessas sementes.
E quando as tais sementes surgiram, lá estava ele candidato a semeá-las. Era 1959 e o papa João XXIII causou a maior surpresa ao convocar o Concílio Vaticano II, que reuniu em Roma mais de três mil bispos, entre eles os brasileiros reconhecidamente simpáticos à causa da chamada Igreja dos Pobres. Àquela altura, dom Evaristo tinha 40 anos e guardava com otimismo o seu silêncio para as reflexões nas Catacumbas de Domitila, onde 41 bispos fariam juramento de fidelidade às ideias renovadoras do Concílio. O papa – ele próprio um progressista – queria outros rumos para a Igreja, que julgava afastada do mundo. Neste Pacto das Catacumbas, do qual dom Paulo foi o último ícone, as 13 regras convergiam para o compromisso com uma vida diocesana sem pompa nem riqueza, tal o cotidiano de um trabalhador. Nada de bens próprios, palácios ou roupas vistosas, apenas o desejo de partilhar o dia a dia com os mais necessitados. Nas Catacumbas de Roma se esconderam os primeiros cristãos perseguidos, a exemplo de Pedro e Paulo, e no silêncio delas o cardeal da esperança reafirmou, para sempre, sua vocação para servir a uma Igreja defensora dos altos valores cristãos.
Nada mais compatível com o espírito de um religioso franciscano muito afeiçoado a dom Helder Câmara, com quem dividiu ideias em torno da construção de um mundo menos desigual. Ao voltar ao Brasil, o irmão de Zilda tratou de se fortalecer para implantar ideias nada simpáticas aos olhos do regime militar, que enfrentou sem medo e com a maior convicção. Vendeu o palácio episcopal e comprou terrenos em bairros pobres da periferia das cidades para abrigar gente sem perspectiva de sobrevivência minimamente digna, cuidou de presos políticos (foi um dos maiores nomes da resistência à ditadura e a favor das Diretas Já) e se fez necessário com o seu trabalho pastoral em favelas paulistas, sobretudo. Mas os espinhos advindos de sua postura extremamente humanitária o aguardavam lá na frente, em dois momentos do caminho: quando passou a sofrer perseguição dos militares – morreu, inclusive, acreditando que o acidente do qual fora vítima havia sido uma tentativa de assassinato – e quando João Paulo II desmembrou a arquidiocese de São Paulo dizendo “a Cúria sou eu”. A recriminação do pontífice talvez tenha sido o golpe mais duro.
Cultíssimo, dom Evaristo passou os últimos anos de vida recluso em um convento em Taboão da Serra (SP), mas nunca deixou de ser referência respeitabilíssima quando o assunto era (ou é) luta pela democracia. E porque o tempo quase sempre se mostra redentor de tudo, teve a reprimenda de João Paulo II substituída pelo reconhecimento do papa Francisco, que escreveu ao saber do falecimento: “D. Paulo Evaristo Arns se revelou autêntica testemunha do Evangelho no meio do seu povo, a todos apontando a senda da verdade (…), em permanente atenção aos mais desfavorecidos. Elevo fervorosas preces para que Deus acolha na sua felicidade eterna este Seu servo bom e fiel (…). à essa comunidade arquidiocesana que chora a perda do seu amado pastor e à Igreja do Brasil, que nele teve um seguro ponto de referência”.