29-12

 

Ano está sendo um dos mais cruéis para a cultura, que perdeu ícones em vários segmentos das artes.

Luce Pereira (texto)
Silvino (arte)

É verdade que 2016 segue como uma manada incontrolável de elefantes, solta por ruas estreitas e arrastando tudo pela frente. Mas, entre os prejuízos a contabilizar, possivelmente nenhuma outra área tenha sofrido perdas tão importantes quanto a da cultura, colocando-se neste pacote gente de literatura, música, cinema, teatro, televisão e artes plásticas. Possivelmente, também, nenhum outro ano, na última década, tenha deixado saldo tão desastroso para o mundo das artes, razão pela qual já não seria de estranhar que milhões de pessoas ao redor do planeta estivessem sonhando como o último minuto dele. Nada garante que a morte não vá permanecer rondando tão ferozmente o universo da criação artística, em 2017, mas sonha-se com uma trégua ao menos razoável, porque a falta de mentes, vozes e mãos tão diferenciadas ajuda a alargar o sentimento de vazio e desesperança provocado por uma conjuntura mundial que parece beirar o caos.
Logo em 10 de janeiro, quando os dias ainda guardavam aquele clima de réveillon, imprensa e redes sociais alardearam a morte do cantor David Bowie, 69, com um misto de choque e tristeza, pois a luta de uma das maiores lendas do pop rock, há oito meses, era quase um segredo de família. Finalizou a gravação do último disco (Blackstar), elogiado por críticos de todo mundo, a apenas dois dias de sair de cena, deixando inconsoláveis fãs que o acompanharam durante toda a carreira. Bowie viveu para se reinventar de forma quase obsessiva, como se, desafiando-se o tempo inteiro, quisesse dizer que o céu era o limite. Fez isso na música, na moda e mesmo em relação à sexualidade, rompendo barreiras como se ignorá-las fosse a coisa mais natural do mundo. Em dado momento, explicou-se: “O que faço é muito simples, o que acontece é só que as minhas escolhas são muito diferentes das de outras pessoas”.
A propósito, a música pop mundial pode mesmo colocar 2016 entre os seus maiores algozes. Apenas oito dias após a morte de David Bowie, foi a vez do guitarrista da banda Eagles, Glenn Frey, 67, se despedir, vítima de complicações intestinais. Hits como Hotel California, Desesperado, Take it easy e Heartache Tonight têm a marca da criatividade dele. Mas ainda faltava o adeus ao norte-americano Prince (21 de abril), 57, ao canadense Leonard Cohen, 82, e ao inglês George Michael, 53 (neste domingo de Natal). Três talentos excepcionais que se tornaram ícones pela empatia absoluta com seu público. Prince, conhecido como o som de Minneapolis, chegou ao topo de sua carreira em 1984, com o álbum Purple Rain, e morreu de overdose, enquanto Cohen, que faleceu vítima de uma queda durante o sono, mais do que cantor era músico, além de poeta lendário – o mais adorado do pop, na opinião de muitos críticos. E quando ninguém mais acreditava em novo sobressalto, vai-se, vítima de insuficiência cardíaca, George Michael, que em quatro décadas vendeu mais de 100 milhões de discos e recebeu inúmeros prêmios, entre eles o MTV Video Music Awards de 1989, entregue por Madonna, de quem se tornou muito amigo.
Perdas enormes, também, na literatura, começando pelo genial Umberto Eco (19 de fevereiro) sobre quem se escreveu “era um sábio que conhecia todas as coisas fingindo que as ignorava para continuar aprendendo”. Autor de obras como O nome da rosa e O pêndulo de Foucault, tinha 84 anos, uma biblioteca que fazia jus ao profundo conhecimento acerca de tudo que o interessava e admiradores no mundo inteiro. A despedida de Eco aconteceu no mesmo dia do adeus da norte-americana Harper Lee, 89, autora do clássico O sol é para todos (1960), que vendeu mais de 30 milhões de exemplares. Pouco mais de um mês depois, em 31 de março, o vencedor do Nobel da Literatura de 2002, Imre Kertész, autor de Sem destino e sobrevivente de Auschwitz, também saía de cena, aos 86 anos. Já o dia 13 de outubro chegou trazendo o anúncio da morte de outro Nobel da Literatura, o italiano Dario Fo, que não dava trégua ao clero com suas críticas. Recebeu o prêmio em 1977 e uma de suas mais célebres obras, Morte acidental de um anarquista, estava sendo montada até recentemente no Brasil. O último desta lista foi o poeta Ferreira Gullar, 86, falecido no dia 4 deste mês. A obra do imortal maranhense, autor do Poema sujo, é considerada uma das mais vigorosas da língua portuguesa.
O mundo ainda perdeu os atores Alan Rickman, 69 anos (15 janeiro),George Gaynes, 98 (16 de fevereiro), Bud Spencer, 86 (27 de junho), Gene Wilder, 83 (29 de agosto) e Carrie Fischer, 60 (27 de dezembro), também o produtor musical George Martin, 90 (9 março). Do lado brasileiro se foram, além de Gullar, o músico pernambucano Naná Vasconcelos, 71 (9 de março), o cantor Cauby Peixoto, 85 (15 de maio), o artista plástico Tunga, 64 (6 de junho),o diretor de cinema Hector Babenco,70 (13 de julho), a atriz Elke Maravilha,71 (16 de agosto) e o ator Domingos Montagner, 54 (16 de setembro). Por tudo isso, o mundo disse sim quando Madonna desabafou em sua conta no Instagram, ao saber da morte de George Michael: “Será que 2016 pode dar o fora já?”.