12.01

 

Atual presidente despediu-se com discurso que empolgou e, irritado, sucessor deu a primeira entrevista.

Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)

Se o poder cobra um preço muito alto, a aparência atual do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, é a prova mais inequívoca desta teoria. O homem que na noite desta terça-feira entrou no McCormick Place, em Chicago – cidade onde encontrou a política e Michelle – lembrava bem menos aquele cujas palavras serviram para injetar dose extraordinária de entusiasmo na América ao garantir “Sim, nós podemos” (Yes, we can). Parecia cansado e abatido ao longo do discurso de despedida, quando aproveitou para destacar os avanços obtidos a partir de sua presença na Casa Branca. Mas, nem era para menos, porque a sombra de Donald Trump, desde a vitória sobre a ex-secretária de Estado, Hillary Clinton, deu sempre a impressão de pairar sobre os ambientes onde os democratas tentam sacudir a poeira do fracasso eleitoral – e nada mais desalentador. É como se a soma dos benefícios não significasse nada diante da surpreendente derrota nas urnas e do que isso representará, a partir do próximo dia 20.
Cabelos brancos, mais magro e sem metade da energia que funcionava como combustível para o “Yes, we can”, não perdeu, no entanto, um milímetro da elegância, do tom afável e da retórica, algumas de suas maiores marcas e sem as quais não é possível falar em carisma. Nisso, havemos de convir, Obama saiu-se bem como poucos ocupantes da Casa Branca. Não fora a “vírgula” republicana, que roubou a graça de todo a História escrita ao longo dos dois mandatos, aquele momento teria sido outro, embora os fatos produzidos pelo sucessor indiquem que os norte-americanos ainda devam sentir muita falta do estilo Obama-Michelle na Casa Branca. Controvérsias à parte sobre o resultado da política externa em áreas como a Síria, a postura discreta da família se estendeu à forma de governar. Além do que considerou os maiores avanços – reverteu a recessão gerada pela crise mundial de 2008, recuperou a indústria automobilística, abriu um novo capítulo no relacionamento de Washington com Cuba e encerrou o programa nuclear do Irã “sem disparar um tiro” -,Obama sai sem deixar pelo caminho evidências de que se comportou de forma ruim na relação pessoal com o poder, por exemplo, trapaceando ou auferindo privilégios e ganhos.
O mesmo não se pode dizer de Trump, que, ontem, depois de rumores sobre que o Kremilin estaria de posse de um dossiê de 30 páginas com força para arruiná-lo politicamente (conteria escândalos financeiros e sexuais), resolveu dar a primeira entrevista depois de eleito – destemperada e grosseira como se esperava que fosse. Lá para as tantas, olhou para o repórter Jim Acosta, da CNN, e negou-se a responder uma pergunta dizendo “você, não, sua organização é terrível, vocês são notícias falsas”, referindo-se ao fato de o veículo haver noticiado a existência das denúncias, logo cedo desmentidas pelo serviço secreto russo. O fato é que, ao contrário da conhecida discrição de Obama para tratar de assuntos pessoais e de governo, tem-se a impressão de que tudo que vem do lado do bilionário novaiorquino cheira a desconfiança, ameaça e desrespeito, como se considerasse não existir nada acima dele.
No entanto, depois de protagonizar tantos episódios ruidosos antes mesmo de assumir, fazendo das redes sociais a via mais comum para tratar de assuntos de extrema importância, parece que Trump começa a dar aos norte-americanos a real dimensão da pessoa que elegeram para comandar suas vidas. Tanto assim que uma pesquisa da Universidade de Quinnipiac apontou 52% dos entrevistados julgando que ele será um líder “não tão bom” ou “ruim” e 51% considerando que faz um mau trabalho como presidente eleito. Agora já é tarde. Mas a América pode dormir com uma certeza: nem de longe parecerá a mesma, nos próximos quatro anos, porque existe um abismo separando as eras Obama e Trump. Na primeira, a democracia era meio e fim; nesta, lembra apenas um velha senhora que desagrada, entre outras coisas, pelo horror a muros altos e longos.