08.02

 

Profissional da velha geração, ele sabe tudo de endereços e tem clientela fixa graças à fidelização.

Silvia Bessa (texto)
Shilton Araújo (foto)

Em toda rua do Recife há uma boa história. Na Raul Lafayette, os taxistas têm uma suspeita. Se colocassem um banquinho e cobrassem 50 centavos de Real por uma informação de endereço para atender o passante ou vizinhos das redondezas do bairro de Boa Viagem, Zona Sul da capital pernambucana, “ninguém estaria liso”. Nesta lógica, pelo que dizem os amigos, um deles tinha até alguma chance de ficar rico: um cidadão apelidado com o nome de um estado nordestino e dono de memória invejável. É Ceará ou Vicente de Oliveira Lima, um baixinho de 54 anos de idade, simpático e conquistador do cliente alheio. Ceará é aquele que veio com malas, cuias, a mulher Maria do Socorro, um filho com três anos e uma filha com dois para recomeçar a vida longe do vício do jogo de bicho. Gostou. Ficou.
É o mesmo para o qual os colegas ligavam quando nem existia sistema de navegação GPS. O mesmo a quem recorrem hoje em dia quando o equipamento eletrônico falha ou querem localização mais urgente. “Eu mesmo cansei de perguntar a ele. Sabe tudo. Duvido que tenha alguém que conheça mais que ele”, diz o colega de ponto Glaryston Falcão. “E não só dá o ponto de referência como também detalha lembrando até da cor de uma banca de revista, por exemplo, para que a gente não se perca”, completa. São 29 anos de praia, desde que Ceará embarcou em Fortaleza em um expresso de luxo e resolveu bater sem avisar na casa dos tios, seu Almir de Oliveira e dona Maria do Socorro.
“Sabe por que lembro desses nomes todos? Porque amo minha profissão. Meu sonho é me aposentar rodando nas ruas”, planeja Ceará. Eram 15 horas por dia como taxista; atualmente são cerca de 10 horas, de domingo a domingo, sem folgas. “É que não consigo ficar em casa. Além do mais, perco clientes, né?!”.
A relação com a geolocalização parece enraizada nele. Se se quer saber o nome de batismo, Ceará responde: “Vicente de Oliveira Lima, mas não sou dono de nada na Soledade”. Sem entender, o Google elucidou a brincadeira. Fazia uma referência à Avenida Oliveira Lima, situada próxima à Igreja do bairro da Soledade, mais para o Centro do Recife. Se se quer saber onde ele mora, Ceará responde: “Nasci e me criei em Piedade”. A web esclarece de novo: Reside hoje em Piedade (na cidade de Jaboatão dos Guararapes, município colado com Recife) e nasceu em Piedade, bairro de Fortaleza (Ceará).
A memória para endereços é um trunfo dele. Já a fidelização é um negócio que Ceará sabe cuidar e muito. Uma estratégia: faz viagens no esquema de “fiado”, pague outro dia, para clientes antigos. A maioria da clientela é composta por idosos que se deslocam para consultas médicas ou casa de parentes. “Muitas vezes isso até me ajuda a juntar o dinheiro e ter como pagar as contas no final do mês”, justifica. Perdeu muito; diz não se arrepender. A fama dele pelo “fiado” é conhecida e tem colega que a condena.
Ceará pode até se lamentar pelas supostas perdas de demanda após a chegada do Uber – considera os motoristas do aplicativo “clandestinos”. Vale, no entanto, frisar: o telefone celular dele não fica sem tocar por muito tempo. Quando não pode atender ao chamado, repassa a corrida para os companheiros. Houve situações em que chegou a pagar para colegas por uma corrida e ficar com o crédito do cliente. Tudo para não perder o freguês. “É um cara muito honesto, mas esse negócio de fazer fiado é muito errado. Tira a oportunidade de outros fazerem corridas também. Sou contra e não faço fiado”, diz um taxista do mesmo ponto.
Ceará tem agendas que poderiam ser até fonte de estudos estatísticos para quem quisesse estudar as perdas financeiras após a chegada do Uber. Nelas, armazena movimentos diário, mensal e anual do seu táxi. No final do ano sabe o que gastou com a gasolina, quanto ganhou e qual o lucro obtido.
Parte do material do escritório ambulante de Ceará, ou seu Vicente de Oliveira Lima, fica no porta-luvas do veículo dele. Ali guarda ainda um catálogo telefônico das antigas contendo páginas de mapas da cidade para caso a sua lembrança falhe, o GPS eletrônico falhe e o jeito seja buscar recursos analógicos para não deixar o cliente perder tempo. Afinal, o cliente tem de voltar. “Foi assim, com este dinheiro, que criei meus cinco filhos”, diz Ceará, o GPS humano.