Em 1930, com 400 mil habitantes, o Recife era uma cidade que queria ser cosmopolita. Seu porto era movimentado, descarregando cerca de 150 vapores por mês. Marinheiros dos sete mares aproveitavam a parada para procurar uma namorada ou se embebedar nos bares próximos aos cais. A preferência dos ingleses era o Ship Chandlers. Os alemães, um estabelecimento que tem uma tabuleta informando “Man Spricht Deutch”. Em comum entre eles, a cerveja gelada.
Entre os estrangeiros, um norte-americano observava tudo com interesse. O jornalista Frederick Simpich, da National Geographic Society, aproveitou a temporada forçada na capital pernambucana – seu hidroplano foi atingido por uma embarcação e perdeu uma asa – para traçar um perfil curioso da Veneza dos trópicos, ou melhor, uma Amsterdam.
Para Simpich, o Recife realmente parecia uma cidade holandesa. “Há qualquer coisa nos canais, nas ruas sombrias e nas muitas pontes que recordam a Holanda, ou melhor, a Bremen (cidade alemã) decadente”, escreveu em seu relato que foi publicado no Diario de Pernambuco de 11 de dezembro de 1930 com o título “O Recife visto por um jornalista norte-americano”. Conduzido por Mário Melo, diretor do jornal, ele percorreu ruas congestionadas, visitou a área portuária, museus, foi ao Jiquiá (ver o ponto de atracação do Zeppelin) e até conheceu Boa Viagem. O que lhe interessava mesmo eram as pessoas. E, entre elas, os carregadores de piano, uma atividade nunca vista em seu país.
“Um piano oscilava na cabeça de seis homens de igual altura, aproximando-se com rapidez. Os carregadores marchavam de cabeça erguida, pescoço rijo e mãos aos lados, a passo certo. Qualquer vacilação significaria desastre. À frente vinha o guia, abrindo caminho e dando ordens. Faziam as curvas nas esquinas como uma companhia militar. Esses homens só carregam piano”, descreveu Simpich, que registrou a passagem dos homens negros com sua câmera fotográfica. Ainda da época dos escravos, descrita por Gilberto Freyre, a arte de carregar piano na cabeça no mesmo passo para não desafinar o instrumento não resistiu por muito tempo após a visita do norte-americano. Os caminhões passaram a fazer o serviço.
Nas andanças de Simpich pelo Recife pode-se perceber elementos que permanecem ainda hoje, como a necessidade de seguir a moda vigente e se deixar influenciar pelo que vem de fora: “Muitas senhoras compram nas livrarias figurinos americanos e magazines que ensinam a construir e mobiliar casas modestas. Poucas leem inglês, mas ainda assim os desenhos interessam-nas e nota-se a influência americana nos vestidos e no arranjo da casa. O cinema também exerce influência sobre a moda e as diversões. Nestas, predominam o futebol e as corridas de cavalos”.
O jornalista norte-americano também faz um relato sobre Boa Viagem, que já evidenciava não ter mais espaço para pescadores e gente simples: “Voltamos por uma praia semelhante a Riverside Drive – a famosa e aristocrática praia conhecida por Boa Viagem”. A um lado, o mar, ao outro as suntuosas mansões de pedra vermelha dos senhores de engenho e outros ricaços.
Por fim, parece que Simpich gostou do Recife, apesar dos carros malcheirosos por conta da mistura de gasolina e querosene: “Isto aqui é uma cidade de Romeus e Julietas”.
A foto colorizada manualmente dos carregadores de piano que ilustra esta postagem é um cartão-postal impresso na Inglaterra, sem data de produção, mas que deve ser, no máximo, da década de 1920. A imagem que integra hoje o acervo da Fundação Joaquim Nabuco pertence à coleção Josebias Bandeira.