09.03

 

Professora de Aliança, Marcela Souza coloca o seu empoderamento feminino a serviço das crianças.

Silvia Bessa (texto)
Marcela Sousa (foto)

Tentou conter-se. Os olhos, todavia, estavam marejados. Inundados por um lamento. Marcela havia pedido às suas crianças para que escrevessem ou narrassem alguma história de violência doméstica vista no entorno onde vivem. Estava ela diante de uma turma de 40 alunos, idade entre 9 e 13 anos, todos moradores da Rua da Palha – uma comunidade pobre do município de Aliança, Zona da Mata de Pernambuco, a 80 quilômetros do Recife. Cerca de noventa por cento da turma tinha um relato de agressão física ou verbal na memória. “Eu não queria nomes de quem fez nem de quem sofreu. Só a experiência”, explicou a professora Marcela Souza, 31 anos. “Uma criança foi tão realista que percebi que ela falava do próprio pai. Foi muito triste”.
Marcela conta que relatos assim são frequentes. Em um mês, tem-se notícia de pelo menos um caso, dito como se fosse algo aceitável em meio à triste realidade de desemprego, recursos escassos, drogas, relações sociais. Dia desses uma mãe em confidência pedia doação de roupas para ela e para os filhos. O marido teria queimado o pouco vestuário da família e as crianças estavam sem conseguir ir sequer à escola. Teve de submeter-se à nova humilhação. A mulher quase morria de vergonha mas não tinha como repor as perdas. Coube a Marcela e à direção da escola ajudar buscando vestes com conhecidos.
A professora Marcela Souza, que atua na Escola Municipal Evangelina Moraes Pessoa de Melo em Aliança, é daquelas mulheres engajadas e comprometidas com a pedagogia. Dá provas de empenho há mais de sete anos e tem um universo de admiradores. Focada, desde segunda optou por ser monotemática aproveitando o 8 de março, Dia das Mulheres. Planejou um projeto de sequência didática para o 5º ano do Fundamental 1 que permeava todas as disciplinas e que se voltava para tratar de direitos e crimes contra a mulher.
Para falar de matemática, fez gráficos da violência em cartolinas. O Nordeste tinha uma coluna enorme. Números reais. Os meninos se admiraram com a disparidade em um comparativo. “Neste caso, trabalhei as proporções sobre a origem das agressões”, contou Marcela. Quem era o agressor mais comum. Quando foi dia de ensinar português, levou charges de jornais e revistas, conceituou formas de comunicação e novamente mostrou as mulheres sendo vítimas. Em se tratando de ciências, falou sobre o corpo humano, sobre abortos. Para trabalhar artes, fez uma encenação com as crianças. Foi aí que um aluno descobriu que xingamentos também são uma forma de agressão: “Oxente, chamar de ‘rapariga’ é crime? O homem pode ser preso?”, questionou-lhe. Marcela respondeu explicando que dá, sim, cadeia. A Lei Maria da Penha, claro, foi citada.
A tarefa de casa dada por Marcela para os alunos resumia-se a uma conversa deles com os pais. A professora espera sensibilizar as crianças e criar uma cultura nova ali, onde tudo parece perdido. Na comunidade da Rua da Palha, conta Marcela, a situação socioeconômica é crítica e repercute fortemente sobre mulheres e crianças. Muitas crianças não têm o que comer, muito menos fardamento, material escolar e acompanhamento escolar dos pais.
Mas Marcela briga pelo empoderamento e autoreconhecimento dos seus. Do salário que ganha como professora concursada dos municípios de Aliança e de Condado, pega uma parte para comprar papéis, colas, lápis para quem não tem. A mala roxa de rodinhas, salpicada de corujas, já é conhecida. E foi com a ajuda do que tinha dentro dela que Marcela Souza conseguiu terminar o projeto da semana. Após a sequência de atividades, no final da aula de ontem, cada criança da Rua da Palha saiu de lá com um balão vermelho de coração, uma flor feita de emborrachado e com uma carta para entregar à mulher que eles mais admiravam. “Nesse início da noite estou rouca porque foi difícil convencê-los de que havia motivo para levarem pra casa aqueles presentes, mas acho que deu certo. Talvez tenha efeito com o tempo”. Pelo talvez, Marcela Souza tentou.