Filho de Paulo Freire, o cientista social Lutgardes fala sobre o pai, os exemplos dele e o Golpe de 1964.
Silvia Bessa (texto)
Instituto Paulo Freire (foto)
Como e enquanto criança, Lutgardes chegou a sentir raiva do pai, o famoso educador Paulo Freire. Afinal, disse-me sobre o que pensava, se ele não tivesse inventado o tal método de alfabetização de adultos, talvez a família não tivesse se separado. Coisa de criança apenas. Era uma técnica nova, que propunha o letramento usando o universo vocabular do aluno e todo seu entorno. Quando o pai foi preso por militares do Golpe de 1964, Lutgardes indignou-se: “Queria dar socos em tudo”. Paulo ponderava com o caçula: “Lut, não é assim, não é assim”. A entrevista de Lutgardes, pela narrativa emocional, foi cercada de ares épicos – ainda que tenha se dado dentro de um escritório com imensas paredes de livros. Eu nunca havia vivido experiência semelhante.
Ele chorou no longo depoimento enquanto falava sobre o impacto emocional da intervenção cívil-militar, que completa amanhã 53 anos. Tivemos que parar a gravação por mais de uma vez antes que Lutgardes, um cientista social e condutor do Instituto Paulo Freire (SP), concluísse a cena do reencontro com o pai, no Chile. Mexia as mãos para o alto, buscava controlar a voz embargada ao contar que a mãe mandou que ele, então pequeno, carregasse a maleta do pai. “Desci com a maleta do meu pai, que para mim pesava uma tonelada, e via ao longo da sacada do aeroporto um homem mais ou menos calvo e de bigode. O vento estava batendo e desarrumando o cabelo. Eu dizia: ‘será que é meu pai?’ e, quanto mais se aproximava, mais ele parecia com meu pai. Mais ele se parecia. E aí, nos reencontramos”.
Foi uma das entrevistas mais marcantes da minha experiência de quase vinte anos de jornalista. Estavam comigo a também repórter na época Juliana Colares e a fotógrafa Annaclarice Almeida. Éramos uma equipe produzindo o especial “Filhos do Golpe”, webdocumentário publicado em 2014. Sempre recordo Lutgardes nessa época do ano em que se lembra do Golpe. Passaram-se 53 anos e ainda não o debulhamos enquanto cidadãos, sociedade, imprensa. Ontem fui mexer em arquivos de áudio antigos. Lutgardes dizia-me que Paulo Freire, na sua intimidade com a família, era um homem muito afetivo. “Sensível, sabia ouvir o filho e ouvir os outros”. Para Lutgardes, era esta a primeira e maior qualidade do pai dele, Paulo.
Incentivar que as pessoas se ouvissem e escutassem uns aos outros nas comunidades onde estavam inseridas foi, na opinião de Lutgardes, aquilo que mais incomodou os militares. Não era propriamente a alfabetização. Era o que vinha depois dela. Paulo propunha o que chamava de Círculo de cultura. Ele consistia em reuniões de adultos recém-alfabetizados para que discutissem a realidade e pensassem na vida que tinham. Como concentrava esforços nos menos favorecidos, Paulo Freire defendia e propagava a utilização de debates como este lembrado por Lutgardes: “Eu faço a casa dos outros. Tenho uma casa de taipa. Por que não tenho uma casa de tijolos? Foi, foi isso que preocupou: a conscientização. A junção da palavra conscientização com educação”, contou-me Lutgardess.
Incrível como Paulo Freire é atual.
Quem quiser buscar inspiração no pensamento de Paulo Freire como educador deixo como sugestão uma obra prima: os audiolivros que o Instituto Paulo Freire lançou na internet. O último de onze títulos foi disponibilizado neste mês de março. Todos têm a narração de Lutgardes Freire, o menino que carregou a maleta do pai.