31.03

 

Vivia na zona rural com dois filhos, e o marido, agricultor, estava desempregado. Já não tinham o que comer.

Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)

Eu andava pela feira me escondendo do sol, pelas sombras das barracas, mas seguia admirada, entre um cumprimento e outro a conhecidos: com tanta tecnologia no mundo, ainda tem gente atrás de fumo de rolo, ratoeira de madeira, candeeiro de flandre e pavio, abano de palha, esses objetos simples que foram sendo engolidos pelo avanço da indústria. Deduzi que se toda semana estão lá expostos, é porque não faltam interessados em adquiri-los. Um cachorro passou roçando minhas pernas, atraído pelo cheiro saído da barraca que vende iscas de fígado, cachaça e outras misturas teoricamente impróprias para uma temperatura na casa dos 37 graus. Perdi as contas dos anos em que o Agreste pega fogo. Mais de seis. No entanto, estes e outros cálculos não representam nada perto do que a tal inclemência significa para quem é vítima dela na prática. Mais adiante, uma mulher aparentando mais de 55 anos estendeu a mão em minha direção, mas antes fosse para me pedir uma esmola qualquer – era a que historicamente mais afronta os nordestinos: precisava comprar uma lata de água.
Creio que facilmente notou o meu espanto. Era muito óbvio, pois passei alguns segundos olhando para ela enquanto me explicava que vivia na zona rural com dois filhos, e o marido, agricultor, estava desempregado. Na casa já não havia quase o que comer e, também, não tinha como comprar água no carro-pipa que abastecia a vizinhança. Então, novamente, os números perderam a importância diante da realidade: não estava com mais de 55 anos e sim completara 37 no mês passado, segundo me disse. Na minha matemática tola, distraída, havia esquecido que nordestinos submetidos a carências dramáticas e obrigados a buscar a sobrevivência debaixo de um sol escaldante são tão enrugados que aparentam o dobro da idade. Senti aquele velho nó na garganta. Por décadas já distante de extremos tão familiares – porque havia passado a infância e a adolescência a ouvir sobre os dramas da seca – percebi que é como se na memória houvesse um espaço apagado separando aqueles anos dos atuais; como se apenas contasse, desde então, apenas minha própria sobrevivência.
Tive dó da magreza, dos cabelos com fios que lembravam a fibra da embira. Chamei-a para tomar um caldo de cana, mas ela preferia uma xícara de café, disse que saíra de casa praticamente sem nada no estômago. “Espere um pouco”, sugeri, e fui até o bar da esquina. Trouxe-lhe a bebida num copo plástico, pão e queijo. Comeu com certo gosto, mas um pouco hesitante – talvez lembrasse que em casa aquilo seria quase um banquete. O sol, tudo, de certa maneira, me fez perder um pouco “o bonde e a esperança”, fiquei como que sem trilho, e não sei de onde tirei a ideia de explicar à mulher que num futuro não muito distante o mundo iria brigar por água. Então ela me contou o episódio da “barragem de Serra dos Ventos” (Tabocas). É um distrito de Belo Jardim (184 quilômetros do Recife), com geografia e clima privilegiados. Vinham caminhões-pipa de outros lugares pegar água lá, com permissão do poder público, e os moradores percebiam que a continuar a exploração o desabastecimento seria iminente. Foi quando decidiram “colocar para correr” todos os motoristas, dizendo que, caso voltassem, seriam recebidos com paus e pedras. Bem, Tabocas sossegou, depois disso – garantiu ela. Na verdade, o que queria dizer é que a briga por água já havia começado e ali mesmo.
Subitamente, a feira tinha se tornado triste, sem sentido, e de noite a conversa parecia ainda incendiar minha cabeça. Com mais ou menos detalhes, o episódio de Tabocas fora confirmado por pessoas com quem conversei – tudo tão terrível quanto a violência destes dias, que ajuda a tornar muito pior a falta de chuva. Então deu saudade das tanajuras, daquele tempo em que a combinação trovoadas-calor intenso era tão certa quanto vê-las saindo aos montes dos formigueiros, para depois voar até perder as asas e a esperança de retornar à terra. Ah, eu bem que quis que, ali, pudéssemos reinventar o mundo. O que é muito pior: sigo imaginando que, talvez, isso seja possível.