Do orfanato para festas infantis do Recife, tio Lulão não é só brincadeira; é exemplo de superação.
Silvia Bessa (texto)
Ana Patricia Almeida/Divulgação (foto)
Que incrível é ver um homem de 49 anos que recuperou a infância perdida. Que tem a sabedoria de usar seus infortúnios para dar forma à imaginação de tantas outras crianças. Porque, na meninice, ele não foi menino. Quando chegava a calada da noite, resolvia suas tristezas se amufambando em um travesseiro. Aos sete anos, Luiz Carlos Paiva tinha a maturidade de pensar: “Não posso chorar na frente de minha mãe para não fazê-la sofrer. Vou me esconder por aqui hoje e um dia vencerei”. Tempos difíceis aquele da época do orfanato onde morou, no bairro do Curado no Recife, há 40 anos. “Tinha de ser forte. Quando chegava a noite no inverno, eu olhava a chuva na janela e pensava: ‘por que estou aqui?’ Chorei demais, não foi fácil mas consegui permitir que a vida seguisse”. Luiz Carlos Paiva dos Santos, 49 anos, virou um especialista. A sabedoria foi ter aprendido a fazer a garotada sorrir. Tanto que deixou de ser Luiz para virar tio Lulão.
Aqui está a inspiradora trajetória de um cidadão que deu a volta por cima até se tornar figura cobiçada em festas infantis da classe média alta da cidade, profissional de recreação que reúne trinta, quarenta, cinquenta guris em uma roda, consegue inacreditáveis silêncios e tem agenda preenchida com seis meses ou até um ano de antecedência. Muitas vezes, fazendo três participações em um único dia. “Acho a brincadeira fascinante. Talvez diga isso porque não tive tempo de brincar quando criança”, analisa. No orfanato, onde viveu até os 14 anos com cerca de 300 crianças, cada um tinha uma responsabilidade. Luiz limpava chão, plantava batatas… Até que ganhou espaço na cozinha.
“Todo dia separava quatro garotos para me ajudar. Um mexia a papa, outro arrumava a mesa, outro fazia o café. Eu era como um inspetor”, lembra. Chegou no orfanato pela necessidade. A mãe, dona Lucília de Paiva – uma doméstica que deixou o Maranhão para trás – faria uma cirurgia do coração. Para os filhos de dona Lucília, a opção de ir para a casa do pai e ficar à mercê das ameaças de uma madrasta violenta foi descartada. Então, restou a alternativa de levar Luiz e um irmão para o abrigo. “Foi sofredor viver rodeado de mato, parecendo um presídio, mas talvez, se não tivesse ido para lá, teria virado um marginal”. No Recife, não havia parentes. A mãe passou a fazer visitas aos domingos.
Foi quando, aos 14, um caminho se abriu: os filhos da patroa da mãe inauguraram uma escola particular. “Será que vocês não querem morar aqui e ajudar a cuidar da escola?”, perguntam-lhes. Já rapazes, não havia tantas opções. Lá, cuidava de serviços gerais até que passou a conviver com crianças. Levava jeito. Impressionou a diretora de uma outra escola até que ela fez o convite: “Se quiser, me procure qualquer dia que lhe arrumo emprego”. Quando ficou desempregado depois de a primeira escola fechar, caiu no desespero. Apareceram oito empregos, diz. Era jovem, foi contratado e ganhou a função de mil e uma utilidades, mas foi avisado: a prioridade seria o portão da escola. Tio Lulão conta que, de tanto que falavam dele em casa, o colégio resolveu reduzir suas atribuições de serviços gerais e lhe deixar mais em contato com as crianças. A primeira festa não tardou a aparecer. “A roupa abria, a maquiagem caía, lembro até hoje”.
Ele fez alguns cursos de recreador, até que recebeu um solavanco. Quando passou a encontrar com as crianças que viu pequenas, notou que faltava algo. “Todos crescidos, me perguntavam o que eu fazia na escola. Eu comecei a ficar com vergonha de estar no mesmo lugar, então fui fazer magistério”. Improvisou um Chevette e foi motorista de condução escolar, trabalhou na cruzada jovem do governo ajudando ex-drogados, ficou empregado numa clínica de psiquiatria; sempre voltava para as crianças. Passou a se dedicar ao seu próprio negócio, o das festas. Nelas, tio Lulão é um sucesso.
Costuma conquistar o respeito dos pequenos com caras, bocas e gracinhas sem pé nem cabeça que combinam com o mundo criativo dos fãs mirins. Diante dele, os olhos ficam vidrados, a atenção parece focada como se houvesse um ponto de luz. Aí é quando Lulão usa seu poder para lançar chamamento como esse: “Pessoal, vou contar cinco minutos e, quando acabar o tempo, todo mundo tem que sair da piscina”. Pais, mães, tios. Piadas de todos os tipos ao redor. Cinco minutos depois, estavam todos os meninos enrolados numa toalha. “Agora todo mundo trocar a roupa”. A correria foi grande da criançada para atender as expectativas do tio. Lulão é uma espécie de fenômeno. “Dinheiro é fundamental para me manter, mas meu prazer é reencontrar com moças e rapazes que um dia vi crianças”.
Lulão foi forte, como desejava ser.