Sigo em frente me assombrando com a ideia de que afeto e respeito passaram a ocupar lugar insignificante.
Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)
Nos elevadores, caras sisudas. Difícil arrancar um “bom dia” caloroso, diferente daquele que se dá por simples convenção social. Semanas atrás, perguntei a um dos funcionários do prédio se aquilo eram modos, passar pelas pessoas como se elas fossem invisíveis e o rapaz me disse que cansou de tentar reciprocidade verdadeira para o cumprimento. Simplesmente desistiu, na maioria das vezes segue reto, cabeça quase baixa. Noutros lugares, observo as mesmas feições fechadas, mas, não tendo o mínimo de intimidade para reclamar, sigo em frente me assombrando com a ideia de que afeto, carinho e respeito passaram a ocupar lugar insignificante na convivência social. É certo que os tempos são dos mais desafiadores e que produzem intolerância como chaminés expelindo fumaça grossa, mas tenho para mim que há algo de muito errado quando deixamos que o terreno dos sentimentos seja invadido por uma desconfiança quase irrestrita, isto sem falar no quanto faz mal esquecer do que fazemos com perfeição e de forma tão natural que o mundo se encanta – abraçar. Onde estão os abraços? Não saio bradando esta falta por aí, mas não quer dizer que não a sinta, que não gostaria de pedir às pessoas um pingo de reflexão sobre tão grande negligência.
Pergunto porque, nem faz muito tempo assim, era tão fácil ver abraços na rua, na padaria, na fila do supermercado, no calçadão da praia. Abraçávamos porque simplesmente o abraço escapava, alegre, em direção ao outro, sem pressa de acabar. Parecia uma confissão de saudade mútua. Ao passo que, agora, abraça-se com muito mais economia de entrega, como se a necessidade maior fosse traduzir apenas com palavras o desassossego de cada dia: o dinheiro curto, a ameaça de perda do emprego, a nuvem mal humorada que paira sobre o futuro, o descaramento de corruptores e corrompidos. Ah, se fôssemos reunir numa só balança os desgostos nacionais, não sobraria desejo nenhum de abraçar. Mas não é bem assim, graças aos céus, de vez que muita gente não mistura as coisas e não deixa as lamentações virarem rio disposto a invadir o terreno dos afetos.
Tão bem definido temos este terreno. Ao menos isso. Lembro como se fosse agora de uma amiga francesa me dizendo que nunca mais conseguiu deixar o Brasil depois de conhecer o abraço dos brasileiros, sobretudo dos nordestinos. Encantou-se com o acolhimento, que não exige saber a nacionalidade ou a naturalidade de ninguém para acontecer da forma mais larga e sincera. A moça enfurnou-se durante 20 anos na fazenda de um suíço, no interior da Paraíba – fazendo melhoramento genético de bovinos e queijos franceses -, depois descobriu-se fotógrafa com f maiúsculo e desde então leva para as suas fotos a humanidade que aprendeu aqui, entre pessoas que abraçam e se mostram felizes mesmo não tendo quase nada. Maravilhava-se com o gesto ainda hoje, porque veio de uma cultura muito diferente, onde abraçar depende de laços e pré-requisitos e abraçar mais forte parece requer dias de primavera e verão, quando o clima torna os corações mais amenos. Contou que, numa das primeiras visitas a Estrasburgo, quando já tinha certo tempo entre os brasileiros, havia guardado o melhor e mais espontâneo abraço para o irmão gêmeo, mas o rapaz estranhou aquilo – não cresceram tocando um ao outro. A lembrança sempre acabava deixando uma sombra nos olhos dela, misto de tristeza e frustração.
Então, nestes tempos bicudos, quando me vem à memória o amor de Claire pela delícia de abraço capaz de prendê-la aqui há 30 anos, penso que não é justo permitir tal força ser afetada pelo desmantelo do país. Abracemos, pois, com verdade e vontade, porque nunca deixaremos de ser um povo gentil, alegre e acolhedor. Apesar de tudo.