22.04

 

Invenção completa 200 anos, mas o Brasil está longe de tratá-la com a importância dada por países civilizados.

Luce Pereira
Samuca (arte)

Há situações em que a injustiça parece tão evidente que o jeito é tentar resgatar uma parte da dívida voltando ao assunto. Digo isso porque celebram efemérides nacionais e estrangeiras em excesso e deixam alguns acontecimentos importantes quase que passar em brancas nuvens. A senhora, o senhor, podem dizer, por exemplo, que a Revolução de 1817, na qual Pernambuco virou nação por 75 dias, mereceu referências derramadas e que o mapeamento do mal de Parkinson foi um passo e tanto dado pela ciência. Sim, não resta dúvida. Mas a bicicleta, também, acaba de fazer 200 anos e por pouco não ignoram a data. Algumas raras matérias fizeram alusão ao tema, que, no entanto, acompanha o mundo desde aqueles dias e caminha com ele para o futuro, mais forte e necessário do que nunca. Briga-se contra o sufocamento das ruas, tomadas por carros e motoristas estúpidos, odeiam-se as consequências legadas pela indústria automobilística, que pioram a qualidade de vida – como aumento da poluição e a violência no trânsito –, enquanto a bicicleta só reúne elogios e adeptos. Não virou uma unanimidade apenas porque toda ela, como dizia Nelson Rodrigues, é burra, mas segue sendo considerada uma das maiores invenções do século 19. Então, por que o entusiasmo visivelmente moderado? Talvez pela vergonha de o Brasil andar tão atrás em relação a países desenvolvidos, no que se refere a políticas públicas de incentivo ao uso do modal.
Bicicleta é um jeito magnífico de se estar no mundo, uma das primeiras e mais legítimas sensações de liberdade que o ser humano experimenta. Desde as primeiras tentativas de uso – que geralmente terminam com pernas e braços avariados – até o ir e vir diário, nos caminhos da vida adulta. Há muito deixou de ser brinquedo, lazer, para se transformar em objeto de extrema necessidade em países que olham com respeito para o cidadão e o futuro. Nesses lugares, tem status de solução inteligente, pois ajuda a aliviar o caos urbano e a melhorar a saúde física e mental dos indivíduos, merecendo, por isso, até espaço exclusivo e muito cool para ser apreciada pelos admiradores. Pena que lugares como o Bicycle Museum of America esteja em New Bremen (Ohio, Estados Unidos), mas quem vai enche as vistas diante de exemplares raros, interage com a história contada através do uso de tecnologia de ponta e sai crente que aquela será uma invenção eterna como o jeans.
No entanto, indiferente à parte do mundo que se mostra em sintonia com o futuro, o Brasil parece estar cada vez menos instigado a fortalecer essa parceria e mais em insistir no faz de conta. Os exemplos existem por toda parte – desde a ausência de um plano convincente de ciclovias, onde a malha cicloviária permita o uso do modal sobretudo como transporte, ao quesito preservação da memória. Basta levar em conta a situação do Museu da Bicicleta (Joinville, SC), que recebia cerca de 1,5 mil pessoas por mês interessadas em ver uma coleção particular com mais de 200 bikes, abrigada no terminal de cargas da antiga estação ferroviária. Fechou por tempo indeterminado. A prefeitura acatou recomendação da Justiça para esvaziamento do imóvel, que é um bem público e não pode funcionar abrigando acervo privado. Primeiro a lei, claro, mas o episódio só ilustra a pouca importância dispensada ao tema.
Naturalmente, o poder público está longe de ser considerado sensível àquilo que pode contribuir para a melhoria da qualidade de vida. Mas é só o nível de pressão exercida pela sociedade que pode determinar mudanças no desastroso modus operandi de governantes e de outros mandatários brasileiros. Aqui, quem levanta a bandeira da bicicleta como saída civilizada para melhorar a circulação nas cidades e a saúde dos habitantes espera mudança significativa na frequência, na forma e na intensidade da cobrança. Isto serve, a propósito, para qualquer outro tema de relevância nacional.