Dono de uma obra irretocável, artista segue alternando shows e literatura, sempre incensado pela crítica.
Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)
O imponderável não me permite saber quem morrerá primeiro, se quem escreve este texto ou Chico Buarque de Hollanda. Mas fico aqui imaginando, às vésperas de ele completar 73 anos (nasceu em 19 de junho de 1944) o que brasileiros comuns como eu, que tiveram a vida marcada por suas canções, peças e livros sentiriam ao ouvir a notícia – aguardada ou inesperada. Sei de muita gente que iria para o botequim mais próximo encher a cara com amigos, todos a certa altura cantando em coro os maiores sucessos; outros tantos que, mesmo odiando televisão, não sairiam da frente da TV, para não perder nenhum detalhe; um bocado se fecharia num silêncio somente possível aos sensíveis em excesso, que sabem se despedir sinceramente; mais uma pá de admiradores se sentiriam tão nostálgicos que nem se a banda passasse cantando coisas de amor os tiraria da tristeza. Só não sei de ninguém que conseguisse ficar indiferente à perda. Não exagero, não, pois embora o tenham jogado no caldeirão onde fervem as distorções políticas do Brasil atual, ele é dono de uma obra primorosa, resistente tanto à hipocrisia que revela e cerca o poder quanto às mudanças na Música Popular Brasileira. Nascem e morrem ritmos, modinhas, inventam-se ídolos do dia para a noite, mas a herança musical de Chico parece seguir encantada ao lado da gente. Dá muita vontade de dizer “Deus lhe pague”, porque com ela aprendemos a acreditar no tempo da delicadeza – que ainda não veio, mas está semeado em nós.
Nos 70 anos, o dono do par de olhos cativantes – algo entre o verde, o azul e o cinza – deixou ainda mais claro o quanto o tempo só fez aumentar sua famosa discrição. Não permite que bisbilhotem sua vida pessoal sem piedade, como se fosse uma mina na qual aventureiros se lançam freneticamente em busca do metal. Intimidade, para ele, é ouro, mas não de tolos. Chico viu, leu e ouviu sobre as inúmeras homenagens país afora (lançamentos de peças, documentários, biografias não autorizadas, caixas de discos …) mas esteve presente em poucas, como na construção do espetáculo Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos. Quem há de dizer que mais este cuidado não ajuda a criar em torno dele uma aura de seriedade e elegância, já pouco comum num universo onde não fulguram mais estrelas da magnitude de Tom Jobim? Foi por gostar de viver uma vida sem afetação e a salvo de tantos curiosos que se viu dono de um endereço em Paris, cidade que sempre acompanhou de perto seu trabalho em disco. A bem da verdade, não somente em relação à música: em janeiro, venceu o prêmio literário Roger Caillois, pelo conjunto de sua obra, na categoria Literatura Latino-Americana. Mas, talvez, já tenha até perdido a conta de quantos ganhou depois de ter composto mais de 400 músicas, escrito quatro peças e doze livros.
No entanto, longe de apenas se entregar a deleites como as indefectíveis peladas com os amigos ou aos dias amenos em Paris, ele se reinventa – alterna palcos com o ofício de escrever e em tudo encontra inspiração. Nos 70 anos, Caetano Veloso escreveu: “O Brasil é capaz de produzir um Chico Buarque: todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso (…). Tudo o que representou reviravolta para nossa geração foi captado por Chico e transformado em coloquialismo sem esforço (…). Chico está em tudo. Tudo está na dicção límpida de Chico”. Mas já nos anos 1990, o cineasta e escritor Ruy Guerra dizia no texto Chico de Hollanda, de aqui e de alhures, que está na página oficial do artista: “(…) Generosidade sistemática, silêncios eloquentes, palavras cirúrgicas, humor afiado, serenas firmezas, traquinas, as notas na polpa dos dedos, o verbo vadiando na ponta da língua – tudo à flor do coração, em carne viva… Cavalo de sambistas, alquimistas, menestréis, mundanas, olhos roucos, suspiros nômades, a alma à deriva, Chico Buarque não existe, é uma ficção – saibam. Inventado porque necessário, vital, sem o qual o Brasil seria mais pobre, estaria mais vazio, sem semana, sem tijolo, sem desenho, sem construção”. Se não temos muitas razões para dar vivas, hoje, demos viva a Chico, um artista brasileiro. Talvez o maior do século 20.