Episódio envolvendo ator Fábio Assunção, em Arcoverde, escancara intolerância e falta de compaixão.
Luce Pereira (texto)
TV Globo/Divulgação (foto)
Desde o último sábado, a propósito do episódio envolvendo o ator Fábio Assunção, em Arcoverde, algumas imagens de infância me vieram à cabeça para lembrar que o sofrimento alheio segue levando as plateias ao delírio. Na ruazinha do interior, carente de um poder público que trabalhasse para oferecer educação e lazer saudável aos habitantes do município, era comum a presença de bêbados e vítimas de transtornos mentais se transformando em alvos de risadas e chacotas, a cada aparição. Geralmente conhecidos por apelidos que ajudavam a ridicularizá-los ainda mais, eram fustigados por adultos e crianças, que em coro tentavam arrancar deles a dose exata de fúria e agressividade. O êxtase só viria se o espetáculo os transformasse em feras acuadas, salvas depois de algum tempo pela misericórdia de alguém que, avesso àquela espécie de “bullying urbano”, dissipava a roda com um discurso de cunho moral normalmente encerrado com a pergunta “gostariam de ver uma pessoa da família de vocês passando por isso?”.
Cidadãos com atitude e discurso semelhantes estão cada vez mais raros, enquanto a disposição para espetáculos daquela natureza, cada vez maior, sobretudo quando as redes sociais se encarregam de transformar milhões de usuários em juízes à vontade para apontar dedos – como se a torcida maior fosse mesmo pela fera e não pelo homem instado a enfrentá-la com muito menos recursos para se defender. Não por acaso Fábio Assunção, em luta constante contra a dependência de drogas ilícitas, ao beber e se envolver em uma briga que desencadeou enfrentamentos com policiais militares de Arcoverde e episódios secundários, transformou-se em uma daquelas personagens de minha infância: empurrado pelo desejo da multidão de vê-lo perder o controle e ser punido pela fúria insistentemente estimulada, acabou jogado, pelo “tribunal da inquisição virtual”, na vala comum onde se misturam criminosos, desvalidos e incompreendidos. Não apareceu ninguém para dissipar a multidão com a velha pergunta: “Gostariam de ver uma pessoa da família de vocês passando por isso?” E a plateia foi ao delírio.
De fato, esta não é uma era que reserve lugar à compaixão, mesmo quando a consciência do erro leva a pedido público de desculpa, como fez o ator comprometendo-se inclusive a pagar pelos prejuízos materiais causados. A ira de milhares de pessoas repousava na desculpa de que multidões enfrentam problemas com drogas no país, todos os dias, são entregues à própria sorte e seus dramas pessoais parecem invisíveis aos olhos de todos, enquanto o artista, apenas por ser “bonito, famoso e rico”, conseguia defensores entre intelectuais, escritores e jornalistas. Por razões óbvias, não há holofotes e câmeras sobre o sofrimento de todos os dependentes químicos, o que, no entanto, não torna menos importante a necessidade de maior compaixão em relação a qualquer um. Trata-se, afinal, de pessoa que precisa de ajuda e se pedras substituem mãos estendidas o diagnóstico não pode ser outro – a primeira a estar doente é a própria sociedade.
A propósito, o desejo de ver o circo pegar fogo, de se divertir com o sofrimento do outro existe mesmo e, de tão recorrente, é estudado pela ciência. Os alemães chamam o fenômeno de schadenfreude e asseguram que entre as causas estão o sentimento de que a pessoa realmente merece o castigo (aqui entra o julgamento) e ainda a rivalidade e a inveja. Assim sendo, antes dos dedos apontados, de eleger quem vai sentar no banco dos réus, talvez o mais saudável seja mesmo prestar atenção no aforismo grego que sugere o autoconhecimento como caminho para quase tudo: “Conhece-te a ti mesmo”.