Espécie de patrimônio vivo do Recife, o mestre aproveita passeios diários para ensinamentos.
Silvia Bessa (texto)
Peu Ricardo (foto)
Tem um professor no Recife que não vai tirar férias no recesso do mês de julho. Até porque nunca na vida profissional tirou férias. Com 87 anos e usufruindo de sua plena e vigorosa atividade intelectual, passeia com sua boina elegante pelas livrarias da cidade, por ruas dos altos da periferia, pelos consultórios onde trata da perna e do braço machucados há dois anos e vai distribuindo conhecimentos de graça. Por aí, encontra quase todos os dias um dos 25 mil alunos que já passaram pela ata de chamada dele. Faz lorota, minicomício educativo improvisado, é fotografado e concentra a atenção de desconhecidos também. “Minha sala de aula é a rua”, diz professor Rafael de Menezes.
Aos 13 começou a lecionar, a pedido do padre do Colégio Nóbrega, que o pinçou como bom estudante e resolveu lhe dar a missão de ensinar português e aritmética a aspirantes do Corpo de Bombeiros – à época, segundo ele, muitos analfabetos. O amor pelo ensino continuou. Era uma sexta-feira e estava com 70 anos quando recebeu o comunicado oficial de uma secretária do curso de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco (UPE) informando que ele não poderia mais dar aulas porque a aposentadoria havia chegado. “A minha aposentadoria se dará na próxima terça-feira. Ainda tenho sábado e segunda-feira”, respondeu, dando de ombros à burocracia. Lecionava Sociologia da Saúde na ocasião. Já havia passado pela Fafire, Unicap, Universidade Federal.
Professor Rafael é capaz de passar horas a falar sobre a vida em escolas e universidades. Tem muitas histórias e a satisfação em dizer que nunca deu uma aula sequer sentado numa cadeira diante de um birô. As razões, enumera: “Primeiro, ficava em pé para prestigiar o aluno. Segundo para olhar no olho dele e conquistar o respeito”. O mestre faz o tipo afetivo. Dos que gostam do abraço do reencontro, porque “é aquilo que fica”. Recordação boa tem de uma enfermeira do Hospital das Clínicas que foi sua aluna. “Professor, posso lhe dar um abraço?”, perguntou-lhe. Aceitou. “É que eu nunca na minha vida vi um livro. Um dia passei por uma biblioteca sua no Córrego da Areia e me perguntaram se eu sabia ler. Não sabia, mas me ajudaram a aprender. Fiz cursos e hoje sou formada”, contou a moça. Até hoje ele lembra dela e repete: “Isso é uma beleza”.
Ao longo da vida construiu onze bibliotecas públicas em áreas humildes da cidade. A última obra dele é de 2016, uma mistura de capela e escola erguida no Alto do Rosário (Zona Norte do Recife). Os terrenos foram doados por ele e a maioria não só funciona como recebe a sua visita – ainda que não as mantenha financeiramente mais. Professor Rafael de Menezes foi vereador do Recife por quase 20 anos (de 1982 até 2000). A dedicação e entrega à educação são muito maiores que o cargo que ocupou. O pensamento dele era respeitado pelos pares e por admiradores, eleitores ou não. Sobre este período, uma peculiaridade. Nunca se deu o direito de colocar os pés em um veículo oficial disponível para ele. Responde o porquê: “Não tinha a menor possibilidade. Como, minha filha, eu poderia entrar numa faculdade com um carro do governo pensando do jeito que eu pensava e penso?”, devolve a pergunta.
A dedicação era (é) para a formação do ser humano. Chegava a levá-lo a zarpar para Toritama, interior de Pernambuco, para comprar tecido para o fardamento de meninos escoteiros. “Veja bem, esses meninos desfilariam no 7 de setembro com a Aeronáutica. Eu ficava pensando: eles nunca mais vão esquecer e, se isso acontecesse, eu poderia ajudar a formar esses indivíduos. Transformar essa massa em bolo”.
O professor de 87 anos que nunca tirou férias acredita que não tem conselho a dar. Só opiniões. Escreveu mais de 15 livros (nunca vendidos, todos doados). A um deles (de 2014) deu o título “A vocês que ainda ficam”. Ele gosta de lembrar que a estimativa de vida do brasileiro é de 74 anos em média, então perguntei-lhe qual seria a maior lição que poderia nos deixar. Sentenciou, pois: “Queira bem a si próprio. Quem gosta de você é, primeiramente, você mesmo. Se olhe no espelho, seja alegre, otimista e de bem com a vida. Tudo dará mais certo”. Professor Rafael de Menezes é um aulão ambulante.