A época da busca pela fama instantânea é também a que sinaliza para uma espécie de apagão humano.
Luce Pereira (texto)
Arte DP sobre fotos da internet (imagem)
Eu nunca havia visto crianças pedindo esmolas no caminho para o supermercado mais próximo de minha casa, um percurso de menos de 300 metros. Na tarde de quarta-feira encontrei três, que corriam para o semáforo mal a luz ficava vermelha. Uma delas parecia ter cerca de 4 anos, enquanto as outras, entre 6 e 8. Justo a pequena carregava uma sacola plástica cheia de flores miúdas que serviriam para recompensar eventual ajuda recebida. Em todas as vezes, no entanto, deixava a flor em qualquer dos retrovisores laterais do veículo sem nada conseguir. Numa dessas abordagens, pareceu assustada quando um adolescente, viajando no banco traseiro, sacou vistoso smartphone e mirou na direção dela – saiu correndo para junto das outras duas, que se encontravam na mesma tentativa junto a carros próximos. Observando a cena, parada na esquina, me veio à cabeça uma imagem que correu o mundo, a da menininha síria de mãos para o alto, rendendo-se, ao confundir a máquina de um fotógrafo com uma arma. Eu não saberia dizer o que me incomodou mais naquela hora – constatar o abandono a que a infância segue entregue, a certeza de que a era da superexposição é a vitória da futilidade sobre o humano ou o entorpecimento e a incapacidade de reagir à violência cotidiana. Creio que a soma de tudo, por o conjunto revelar um mundo desajustado e sem perspectiva de rever a empatia necessária com a solidariedade, a compaixão, o respeito ao semelhante.
Extremamente natural que em um cenário assim o pior ainda esteja por vir, levando muitos a viver repetindo o velho chavão “quando eu achava que já havia visto tudo …” Sim, a realidade não para de causar espanto. Não me contive e quase automaticamente me peguei recorrendo à frase ao ler a notícia de que a norte-americana Monalisa Perez, de 19 anos, grávida do segundo filho, matou o namorado de 22, Pedro Ruiz, numa tentativa de que seu canal no YouTube passasse a ter milhares de seguidores, àquela altura resumidos a apenas 300. Uma morte transmitida ao vivo, enquanto Pedro segurava um livro e a bala varava as páginas atingindo-o no peito e matando-o pouco depois – para desgraça da youtuber, que vai pegar dez anos de cadeia pelo tiro fatal. A experiência não deu certo, pois, segundo familiares da moça, a vítima usou um livro diferente daquele testado antes, que não havia sido transfixado pelo projétil.
Numa eleição sobre “vilões” responsáveis pela transformação de parcela razoável do mundo em pessoas preocupadas apenas em se dar bem, indiferentes ao sofrimento dos outros, muito provavelmente o universo virtual apareceria entre os primeiros, pela exacerbação do individualismo. De repente, tudo se faz por aqueles 15 “quilobytes” de fama, não importando a que potência o exibicionismo será elevado, pois ele poderá garantir ao mesmo tempo visibilidade e dinheiro, como sonhava o casal Monalisa e Pedro. Eis que estamos em um tempo que a (sempre sensata) atriz Helen Mirren, vencedora do Oscar por sua atuação em A rainha, chamou de “era Kim Kardashian”, numa crítica à maneira de a celebridade norte-americana engordar a conta bancária em US$ 10 milhões por mês. Como? incendiando o desejo do mundo por futilidades e protagonizando episódios sob medida para a ideia de que a vida não passa de um conjunto de experiências bobas e descartáveis.
Antes disso, Umberto Eco, um dos maiores intelectuais do século 20, falecido aos 84 anos, já havia se queixado, depois de uma cerimônia na Universidade de Turim, em 2015: “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel”. Porém, o que importa não é mais dar nomes aos vilões que disputam a totalidade dos territórios sem deixar espaço algum para o humano e sim entregar a eles todas as chaves. Neste ponto, penso nas crianças e tenho medo. Podem, num futuro muito breve, não saber mais o que é infância.