Evento ecoa pensamento do brasileiro que alertou para a “mudança de comportamento” dos famintos.
Vandeck Santiago (texto)
Dimitar Dilkoff/AFP
O noticiário de ontem traz uma informação preocupante que faz lembrar um brasileiro ilustre. A notícia é esta: a fome voltou a aumentar no mundo, após 25 anos de queda, segundo relatório da FAO. O brasileiro ilustre é este: Josué de Castro, pernambucano do Recife (1908-1973), autor de obras de que se tornaram referência mundial sobre o assunto.
A FAO é a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Seu diretor-geral é o brasileiro José Graziano da Silva. Ele quem fez o alerta, ontem, sobre o aumento da fome, durante discurso para ministros e representantes de governos (o Brasil, inclusive), em Roma. O flagelo já atinge mais de 800 milhões de pessoas. Desse total, 60% estão em países que sofrem com mudanças climáticas (seca, principalmente) e conflitos, como a Síria e os refugiados sírios nos países vizinhos. O quadro é mais grave em quatro países: Nigéria (no Nordeste de lá), Somália, Sudão do Sul e Iêmen.
É aí que entra Josué de Castro, que também foi dirigente da FAO (entre 1952 e 1956). Entre outros livros, ele escreveu Geografia da Fome, 1946, que tratava da questão no Brasil, e Geopolítica da Fome, 1951, que ampliava os estudos para o mundo. Duas obras pioneiras. Josué associava fome à paz — o que também foi um pioneirismo dele. Lembrava que ao longo da história a fome tinha sido uma das mais perigosas forças políticas. A queda da Bastilha, por exemplo, tivera do outro lado uma multidão de esfomeados gritando por pão. Seu raciocínio era de que quem deseja a paz, precisa declarar guerra à fome — problema que não poderia ser encarado como uma fatalidade, e sim como algo criado pelo homem, e capaz de ser por ele vencido.
Quase sete décadas depois, o papa Francisco — no mesmo evento de ontem, em Roma — praticamente repetiu suas palavras, em mensagem que a imprensa internacional classificou como dura. Disse que a fome “não é natural”, e sim um fenômeno “causado pela indiferença de muitos ou o egoísmo de uns poucos”. Segundo o papa, “as guerras, atos de terrorismo e deslocamentos forçados que minam a cooperação não são inevitáveis. Mas sim consequências de decisões concretas”. Dirigiu-se à comunidade internacional afirmando que suas decisões não devem basear-se apenas no “desejo da eficiência” que não é acompanhada pela “ideia de compartilhar”. Também defendeu que, quando um país se mostra incapaz de alimentar sua população, a ONU e outras organizações internacionais devem intervir para enfrentar o problema.
Francisco Graziano também ecoou raciocínios que Josué já defendia nas décadas de 1950 e 1960. As crises naqueles países têm levado grande número de seus habitantes a emigrarem, muitos deles indo bater à porta das nações ricas. Assim como o papa, criticou a comunidade internacional, destacando que colocar os refugiados em acampamentos não é prática que os salvará. Eles precisam ter condições de produzir em suas próprias terras.
Ano passado, a diretora do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, Ertharin Cousin, havia lançado uma advertência: “A fome exacerba as crises, causando mais instabilidade e insegurança. O que aparece hoje como um desafio ligado à segurança alimentar se torna depois um desafio ligado à segurança”.
Em texto de 1967 (Fome como força social: fome e paz). Josué dizia que ela não age apenas sobre o corpo, “consumindo sua carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também age sobre seu espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta moral”. Segundo ele, “nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo quanto a fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição. Excitado pela imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos primários são despertados e o homem, como qualquer outro animal faminto, demonstra uma conduta fundamental que pode parecer das mais desconcertantes”.
Josué de Castro teve os direitos políticos cassados após o golpe de 1964 e morreu no exílio, em Paris. Os alertas que deixou permanecem plenos de sentido.