12.07

 

Crianças celíacas não comungarão pela via tradicional, porque Vaticano quer “pão” apenas à base de trigo.

Luce Pereira (texto)
Editoria de arte (imagem)

Os adjetivos da era moderna, geralmente abundantes na língua inglesa, parecem sob medida para definir o papa Francisco – light, soft, cool, pop. Tudo isso junto quer apenas resumir um pontífice antenado com o seu tempo e com a necessidade de reposicionar a imagem da Igreja aos olhos do mundo, depois de a instituição tanto perder milhões de seguidores em virtude de sucessivos escândalos e casos de omissão explícita. Mas unanimidade não existe mesmo. Assim, até Francisco é capaz de, de uma hora para outra, atentar contra os elogios que vem colecionando desde que foi escolhido como pastor do rebanho católico. Ao assinar documento em que torna inválidas para a Eucaristia as hóstias sem glúten, permitindo apenas as com baixo conteúdo da substância, nem parecia aquele que desde o começo não deixava dúvidas sobre o desejo de oxigenar com ideias novas os pulmões de uma Igreja asfixiada pelo excesso de conservadorismo. E o mundo, é claro estranhou. Não apenas porque o papa fez vistas grossas ao fato de existirem milhares de crianças celíacas impedidas de comungar com a hóstia tradicional, como por desconsiderar a dissonância histórica entre o trigo e a pobreza. Desde tempos imemoriais, o trigo era acessível apenas a pessoas de alto poder aquisitivo – pobres, incluindo o próprio Cristo, consumiam centeio, milho e cevada. Independentemente de tudo isso, ainda tem o fato de o mundo estar em visível convulsão, necessitado de reflexões e ações que passam ao largo de decisões de pouca ou nenhuma importância como esta, exceto para ritualistas incuráveis.
É algo como se o documento enviado aos bispos estivesse olhando na direção oposta das verdadeiras necessidades do momento, considerando-se, inclusive, que na cabeça dos fiéis o que conta não é a fórmula do “alimento”, mas o fato de ele simbolizar “o corpo de Cristo”, como lembram os religiosos na hora de ofertá-lo. Imagina-se, então, uma dessas pessoas lendo as recomendações assinadas pelo cardeal Robert Sarah: “O pão tem que ser de ázimo (livre de fermento), só de trigo, assado recentemente e elaborado por pessoas competentes e íntegras. Qualquer outro cereal só é tolerado em mínimas proporções, e o acréscimo de outros produtos como frutas, açúcar e mel se considera ‘um abuso grave’”. Naturalmente, só mesmo especialistas estariam aptos a observar possível desrespeito a essas orientações que, convenhamos, não podem afetar a fé de ninguém – no máximo a saúde, se o cristão for alguém intolerante a glúten. Além do mais, o mundo espera que a Igreja ofereça explicação razoável sobre o que realmente entende como “abuso grave”, Colocando-se de maneira tão severa em relação a qualquer mudança na fórmula e feitura do alimento “que tira os pecados do mundo”, parece que os olhos sobre os verdadeiros pecados intramuros da instituição perdem em intensidade.
Faz parte das recomendações, ainda, ser servido, na Eucaristia, apenas vinho que proceda da uva, devendo os sacerdotes conservá-lo em perfeito estado, para não avinagrar. Como, via de regra, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, sensato é crer que diante de qualquer descuido nesse sentido nenhum religioso se daria ao trabalho de comunicar a Roma sua negligência. Tampouco, com tantos e complexos problemas a resolver, o papa e seus auxiliares diretos encarregariam pessoas de fiscalizar o respeito a essas orientações. Como se vê, assim como países(a exemplo do Brasil) produzem leis que não passam de letra morta, o Vaticano também corre risco semelhante, em nome de suposto zelo por algo que a maioria dos cristãos nem se dá conta. Para eles, interessa de fato o que a Eucaristia sempre representou, à luz das lições do Cristo: simplicidade, fraternidade, compartilhamento dos sentimentos mais nobres, que justificam o tempo dos homens na Terra.