Edwaldo Gomes era dos últimos representantes de uma geração de religiosos em sintonia com o seu tempo.
Luce Pereira (texto)
Paulo Paiva (foto)
Há muitos anos, fui à paróquia de Casa Forte entrevistar o padre Edwaldo (José Edwaldo Gomes), sobre quem já ouvira falar o suficiente para ter certeza de que seria uma conversa descontraída e sincera. Confesso que já não lembro a pauta, mas não esqueço da leveza do encontro, porque ele, quando simpatizava com alguém, logo tratava de retirar todas as formalidades do caminho e convencer que, em qualquer situação, os encontros sempre se darão entre dois humanos cheios de defeitos, independentemente das importâncias que representam ou carregam. Simples assim. Ele era, afinal, um sujeito muito simples, não apenas pelas origens mas, também, pela militância por uma Igreja que se espelhasse mais no social do que na rigidez dos pilares morais sobre os quais fora erguida. Acompanhou dom Helder, naqueles anos de chumbo, e impregnou-se da humanidade necessária para levar a cabo a tarefa de olhar com olhos vivos (e de frente) o sofrimento dos desfavorecidos. Pessoalmente, padre Edwaldo estava longe de parecer um religioso que se preocupasse em aparentar humildade. Longe dos altares, como um homem comum, vestia-se bem, a boa conversa sempre tratando de emoldurar a distinção. Mas era no fazer que se mostrava humilde. Por trás da realização da Festa da Vitória Régia ou nas duas entidades erguidas para abrigar 300 crianças pobres – a Creche Menino Jesus e a Casa da Criança Marcelo Asfora – havia o religioso que continuava sonhando com menos desigualdade no mundo.
Aos 85 anos, mereceu ter a vida contada em livro (Um padre nosso, escrito pela jornalista Vera Ferraz) e aquele dia, o do lançamento (20 de outubro de 2016), serviu para dar uma ideia de sua popularidade. A Livraria da Praça quase não comporta tanta gente atrás de um autógrafo e de um abraço dele, que levou horas assinando exemplares, com uma paciência de Jó. Nas páginas, lá está o religioso que se enfiou na luta por uma Igreja mais voltada para os pobres, o padre que se meteu em encrenca com o Vaticano depois de inadvertidamente ferir o Código Canônico ao celebrar a missa dos seus 50 anos de sacerdócio com padres da Igreja Anglicana, a pessoa admirada por amigos de vários credos e posições na pirâmide social e o sujeito boa-praça, cheio de tiradas inteligentes e sem a preocupação de desagradar até mesmo a instituição à qual pertencia: “Ao longo do meu sacerdócio tenho grande admiração pela Igreja, mas nem sempre pelo homens da Igreja”, autorizou que a autora registrasse em uma das 144 páginas. E noutro momento, deixando a leveza revelar o Edwaldo que sempre divertia muito os mais próximos: “Eu creio na eternidade, mas não tenho pressa nenhuma de ir para lá”.
Os que ficaram sem o apoio dele para seguir em frente é que não tinham mesmo aquela pressa. Apesar do quadro de insuficiência respiratória, que o obrigou a ficar internado desde o dia 22 de junho, paroquianos e amigos esperavam pelo milagre – que acabou não acontecendo. Brincalhão como era, em conversas íntimas seria capaz de confessar que não acreditava em nenhum anjo a postos para tirá-lo da “enrascada final”, porque, quando a morte viesse, não haveria negociação e ela viria para lembrá-lo que a missão estava cumprida. Com certeza. Assim pensam todos os que foram batizados por ele, casados, amparados com conselhos, estimulados com palavras de esperança e mesmo os que discordaram de algumas de suas posições frente a assuntos de interesse coletivo ou da Igreja. É preciso reconhecer, para além das diferenças, a luta por um mundo menos desigual e próximo do humano. Naquela nossa conversa sobre um assunto polêmico ligado à cidade, ou coisa que o valha, lembro de ele ter me dito o que se espera mesmo de alguém acostumado a lidar com as fraquezas humanas: não se iludia nem esperava unanimidade, porque isso nem Cristo havia conseguido. Mas não desistia nunca. Esta geração de religiosos em sintonia com o seu tempo está no fim e talvez tenha sido tal consciência a responsável por duplicar a melancolia dos sinos da Igreja de Casa Forte, na despedida. Ficamos mais sós.