26.07

 

A 47ª edição transformou o Parque João Câncio, em Serrita, num espetáculo de devoção.

Luce Pereira (texto)
Claire Alice Jean (foto)

O coração dos presentes à Missa do Vaqueiro, em Serrita (Sertão do Araripe, 586 quilômetros do Recife), parece não ter tamanho suficiente para comportar a emoção, na hora em que o Parque Estadual João Câncio começa a receber centenas deles, quase todos vestidos com a roupa e os adereços em couro. Vão entrando em seus cavalos ao som da música feita por Luiz Gonzaga em protesto pelo assassinato do primo Raimundo Jacó, na tarde de 8 de julho de 1954, na caatinga de Exu, enquanto trabalhava.
“Tengo/legotengo/lengotengo/lengotengo … O vaqueiro nordestino/morre sem deixar tostão/o seu nome é esquecido/ nas quebradas do Sertão …” Os versos ecoam pelo lugar, realçados pelo trote dos animais e o balançar natural dos chocalhos trazidos pelos donos, todos em silêncio. Sinceramente, aquilo dói e encanta.
Na verdade, encanta desde a formação do cortejo, na pista de acesso ao parque, quando homens e cavalos parecem experimentar a mesma alegria, afinal, vivem uma lida diária tão dura e cheia de dificuldades que ter uma festa dedicada a eles só pode mesmo enchê-los de orgulho. Seria esta a palavra, a metáfora perfeita? Parece pouco para descrever o momento cheio de simbolismo e mesmo os vaqueiros muito jovens não brigam contra as lágrimas que rolam na frente do palco armado para a celebração. Quanto mais os velhos … Ah, esses crispam o rosto e seguram o chapéu no peito, como se mandassem um recado para o coração não aprontar nenhuma. Entende-se. Sem esforço algum.
Neste ano, a cerimônia da 47ª missa, realizada na manhã do último domingo, foi marcada por sermões carregados de protestos contra a roubalheira no país, que repentistas trataram de amplificar na hora do Ofertório, a parte mais bonita: “O vaqueiro oferece as luvas / que protegem as suas mãos/ dos galhos de chique-chique/ nas quebradas do Sertão/ e elas são mais bonitas/ do que a caneta que assina/ o roubo da corrupção”. A cada alfinetada nos escândalos políticos, a plateia ia ao delírio, ainda mais quando dadas por religiosos sob o comando do bispo diocesano de Salgueiro, dom Magnus Henrique Lopes. Aplaudidíssimo, um concelebrante cujo avô viveu a dureza da profissão disparou: “Estamos sofrendo as consequências de um governo irresponsável (…) Preste atenção em um cretino que só vem em sua casa de quatro em quatro anos pedir voto (…) Que país é esse que deixa fechar milhares de escolas? “
Dividindo as celas com os vaqueiros, as crianças levadas por eles evidentemente não entendiam as mensagens cheias de indignação, mas muitas deveriam sentir que se achavam ali para abraçar a continuidade do ofício dos avós e dos pais. Na pega de boi realizada no dia anterior, em uma fazenda próxima, também estavam presentes e, usando chapéus de couro (algumas até com gibão), olhavam atentamente para aqueles homens se embrenhando na caatinga fechada atrás dos bois soltos durante a prova. Olhavam com deslumbramento, como se fossem naturais quedas e cortes provocados pela velocidade com que avançavam por entre os galhos, até se jogarem sobre o animal, tirar do pescoço dele a tabuleta e voltar correndo para entregá-la aos encarregados da cronometragem do tempo. Naquele olhar, certamente, estava escrita a sobrevivência de uma tradição, vez por outra ameaçada pelo descaso do poder público com a cultura. Este ano, o patrocínio da Empetur virou dúvida e a Missa correu o risco de não acontecer, o que seria, além de tudo, um desastre para a economia da pequena Serrita e de municípios vizinhos.
Nada a estranhar que existam pessoas para as quais a Missa do Vaqueiro tenha se tornado evento obrigatório. Gente que vai ao Parque Estadual João Câncio, sem perder um ano, praticamente desde a primeira edição, em 1970. Sim, porque a devoção ao ofício, a fé e o orgulho quando se juntam para iluminar rostos tão rústicos só podem mesmo produzir um espetáculo digno de ser visto de perto. Com toda a alegria e o respeito que aqueles homens merecem.