Iniciativa busca garantir acesso dessa população historicamente discriminada ao ensino superior.
Marcionila Teixeira (texto)
Peu Ricardo/DP (foto)
A estudante Ísis Moreira, 17 anos, está inscrita em um curso preparatório para o vestibular inédito em Pernambuco. O projeto Educar é transformar é destinado prioritariamente a pessoas trans e travestis. A ação oferece uma oportunidade de acesso ao ensino superior para uma população historicamente jogada à margem do direito à educação. A própria Ísis repetiu de ano duas vezes por conta da violência sofrida nos corredores escolares. Os abusos vinham de alunos, mas também de professores, servidores e da diretoria.
Ao longo de um ano a estudante permaneceu em uma sala de aula onde os colegas não falavam com ela. Em outra ocasião, foi proibida de usar o banheiro feminino, apesar de identificar-se como mulher trans e de resolução do governo federal garantindo o uso de banheiros nas escolas de acordo com a identidade de gênero.
Mesmo vivendo um ensino médio atribulado, Ísis conquistou uma vaga na Escola Técnica Estadual Alcides do Nascimento Lins, em Camaragibe, na Região Metropolitana do Recife. Está no primeiro ano do ensino médio, faz o curso de eventos, é chamada pelo nome social e tem garantido o direito de usar o banheiro feminino. Os abusos no ambiente escolar ficaram no passado. A história de superação da estudante, entretanto, nem sempre se repete para a maioria das pessoas trans e travestis. Parte delas não consegue seguir no ambiente escolar diante daviolência sofrida.
Em dezembro do ano passado, um estudo da Secretaria de Educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (ABLGBT) mostrou que 73% dos estudantes que não se declaram heterossexuais no Brasil já foram agredidos verbalmente na escola. As agressões físicas ocorreram com um a cada quatro desses alunos. Dos 1.016 jovens ouvidos na pesquisa, 55% afirmaram ter ouvido, ao longo do ano anterior, comentários negativos especificamente a respeito de pessoas trans no ambiente escolar e 45% disseram que já se sentiram inseguros devido à sua identidade/expressão de gênero. Calcula-se que o Brasil tenha 82% de evasão escolar de travestis e pessoas trans, segundo dados da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
O projeto Educar é transformar foi organizado por integrantes do Movimento Rua – Juventude Anti-capitalista em Pernambuco. Experiências aplicadas no Rio de Janeiro e Goiás serviram de modelo para a iniciativa pernambucana. “A ideia é fortalecer o combate às opressões, estimular o empoderamento e garantir oportunidades de acesso ao ensino superior. Não serão somente aulas preparatórios para o exame. Vamos fazer um debate interdisciplinar com oficinas, mini-cursos e outras atividades”, explica Igor Andrade, professor da rede municipal do Recife e um dos organizadores da iniciativa.
As pessoas interessadas em participar como alunas ou professores voluntários podem acessar o endereço virtual www.educaretransformar.org para se inscreverem. Isso pode ser feito até o próximo dia 5 de agosto. Cerca de 30 alunos já estão inscritos para um total de 50 vagas. O público prioritário são as pessoas trans e travestis, mas no caso de sobrarem vagas, poderão ser preenchidas por pessoas cis-LGB, negras, mulheres e pessoas de baixa renda da Região Metropolitana do Recife.
O curso será gratuito e acontecerá nas tardes de sábado em um local ainda a ser definido no Centro do Recife. As aulas começam no segundo sábado de agosto e seguem até novembro, ou seja, antes da realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). As pessoas, inclusive, se inscrevem no site com o nome social. Em paralelo, os estudantes que ainda não concluíram o ensino médio também serão preparados para o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja).
No ano passado, 408 pessoas foram atendidas por seus nomes sociais durante o Enem. O número representa um aumento de 46% em relação ao ano anterior, quando 278 candidatos fizeram o pedido. A possibilidade de uso do nome social ocorreu pela primeira vez em 2014, quando foram feitos 102 pedidos. Voltando à história de Ísis, ela pretende fazer o Enem por experiência este ano. Na época certa, pretende conquistar uma vaga em psicologia. E adentrar com orgulho uma universidade pública.