Morador da Casa do Estudante por nove anos, médico se forma e agora atua em cidade do Sertão
Silvia Bessa (texto)
Arquivo pessoal (foto)
O maior medo da vida de Lucian enquanto estudante de Medicina era presenciar um parente querido entre a vida e a morte. Em uma madrugada, por volta das 5h e quando o sol ainda estava se pondo, recebeu um chamado telefônico para socorrer uma tia querida, uma quase-avó que fazia carnes cozidas com capricho para ele. Tia Ester tinha sido levada para uma unidade de saúde do município de Trindade, Sertão pernambucano, com mínimo estado de consciência. Dez profissionais em torno dela tentavam fazer procedimentos sem sucesso. Lucian vestiu-se com seu jaleco e conhecimento técnico, interveio e conseguiu entubá-la após uma parada cardiorrespiratória. Às pressas, numa ambulância, a levou para um hospital em uma cidade próxima até que foi internada em uma UTI. “Eu a amava muito. Quando a entreguei para a outra equipe, fui para um canto e desabei a chorar”.
Fazia apenas três meses que Lucian havia se formado em Medicina pela Universidade Federal de Pernambuco – um sonho de vida após muita determinação e dificuldade financeira. O pai de Lucian, o professor Francisco das Chagas, conhecido como professor Chaguinha, deu-lhe o conforto necessário para o momento: “Ele me abraçou e disse que eu fiz tudo o que foi preciso. Foi importante. Meu pai é meu melhor amigo”. Tia Ester, vítima de um AVC extenso, faleceu com poucos dias. A experiência mais forte de Lucian como profissional é cercada de simbolismo: Dr. Lucian M. Feitosa, jovem de 27 anos, formou-se em 2016 e na semana seguinte à sua graduação mudou-se com a mulher e companheira de estudos e medicina, Loanne, para Trindade. Tinha sido uma volta. Com apenas 15 anos, deixou sozinho Trindade, um pequeno e pobre município de Pernambuco, distante 700 quilômetros do Recife.
“Me sinto na obrigação de contribuir de alguma forma com o lugar onde nasci. É um município de grande carência, onde o acesso ao médico é muito difícil e que tem oferta de serviço de baixa complexidade””, diz Lucian. “Hoje me sinto útil no meu lugar”. Em Trindade, ele atua no Posto de Saúde da Família, na Unidade Mista de Saúde Maria Veneri e atende em consultório particular, numa sala compartilhada por outros médicos. Transferiu-se com a mulher do Recife para Trindade na mesma semana que se graduou. Enquanto amigos tentaram emendar uma residência especializada, ele manteve-se firme na ideia de voltar para Trindade. Fazer especialização ou residência em neurologia, sua área de interesse, ficou como meta para um ou dois anos depois da experiência na sua terra natal. Era o que pensava. Agora, um ano depois, cogita ter Trindade como residência permanente, própria para os primeiros passinhos do filho, Henri, que nascerá em poucas semanas.
A decisão de Lucian de voltar a uma cidade como Trindade condiz com a história de vida dele. Filho de professores do município à época – seu Francisco e dona Maria Nilzete – estudou numa escola municipal até a 8ª série. Quando completou 15 anos, o pai lhe perguntou se queria estudar na capital. “Quis e acabei ficando de penetra na Casa do Estudante no Recife com meus primos até passar no concurso para ser aceito lá”. Os pais nunca souberam ao certo da vida que levava: nove pessoas em um quarto de três metros por quatro metros se encolhiam. Dividiam um guarda-roupas de quatro vãos e o piso. “Dormi por dois anos no chão. Juntávamos dois colchões e três homens dormiam”, conta Lucian.
Aprendeu a andar de ônibus enquanto buscava o Expresso Cidadão, a Prefeitura e organizava a documentação. Aos 15 anos, buscava em colégios particulares e cursinhos bolsas de estudo. Conseguiu algumas, após gastar muita sola de sapato. Nove anos na Casa do Estudante, correspondendo-se por carta com os pais, vivendo com R$ 12 por semana para se alimentar quando a Casa não oferecia refeição (era o caso de lanches e dos finais de semana), visitando a família de seis em seis meses, após viajar um dia.
“Até hoje minha mulher reclama porque tentou me vender uma rifa e eu não comprei. Não me lembro”, recorda, citando a piada do casal. Loanne foi parceira. Estudou com ele no ensino médio, passou primeiro no vestibular e – ao lado da família dela – o incentivou em momentos difíceis. Casaram-se, ele construía móveis com pallets, recebia doações de conhecidos, mudaram-se de endereço várias vezes e estudavam sempre. Na terceira tentativa do vestibular, Lucian foi aprovado em Medicina. Não foi cotista porque nos últimos anos de ensino estudou em colégio particular, ainda que com bolsas. Nunca reprovou uma cadeira sequer no difícil curso de Medicina.
Lucian é tímido. Estava preocupado em ter de ser fotografado no meio da cidade. Não sabe ele que sua imagem e sua história, de ida e volta às origens, pode servir de inspiração para moradores de Trindade e para um Sertão inteiro.