“Eis porque desenganei-me das reformas políticas e tornei-me um reformador social”, dizia o abolicionista.
Vandeck Santiago (texto)
Arquivo/DP (foto)
Em uma das mais memoráveis campanhas políticas de Pernambuco, o candidato Joaquim Nabuco fez um diagnóstico da política no Brasil que mantém constrangedora atualidade. O ano é 1884, e o tema que mais mobiliza paixões é a abolição dos escravos. Nabuco, filho de tradicional família do Império, é abolicionista radical. Disputa eleição para deputado geral, o equivalente hoje a deputado federal. O palco principal de sua campanha foi o Teatro de Santa Isabel, que lotava para assistir aos seus comícios — chamados, então, de conferências. Alto (media mais de 1,80m), grande orador (outra figura histórica, Oliveira Lima, dizia que as palavras dele primeiro entravam no coração do ouvinte, e só depois seguiam para o cérebro), Joaquim Nabuco eletrizava a plateia.
Boa parte da classe política preferia discutir reforma política; Nabuco, não. “As reformas políticas exprimem em nosso país 50 anos de esperanças populares atraiçoadas”, bradou ele para seus entusiasmados eleitores, em conferência no dia 1º de novembro. A mãe de todas as reformas, defendia, era a reforma social. “Sim, senhores”, pregava ele, “precisamos, muito mais do que de reformas políticas, de reformas sociais. (…) Eis a razão pela qual abandonei no Parlamento a atitude propriamente política para tomar a atitude do reformador social. Foi porque também eu desenganei-me das reformas políticas”.
Entre nós e estas frases, o Teatro de Santo Isabel continua no mesmo lugar, mas 133 anos nos separam. Certo que não podemos transportar acontecimentos de mais de um século para os dias de hoje, e ajustar um período em outro como peças de uma engrenagem da Leko. Mas a essência do raciocínio perdura — olhemos esse infindável debate sobre reforma política que surge a cada legislatura do Congresso, e que no final acaba sem nenhuma transformação de fôlego, ou (pior) gerando mudanças em que prevalecem os interesses daqueles responsáveis por sua aprovação. As reformas que Nabuco julgava mais necessárias, naquele período, eram a abolição da escravatura e a universalização da educação. Só para efeito de argumentação, substituamos “escravos” por “pobres”, ou “escravidão” por “desigualdade” — o raciocínio não mantém incômoda atualidade?… Digamos que “reformadores sociais” sejam necessários em um Parlamento cuja maioria acredita que “a mãe das reformas” é qualquer outra, menos a social — e, olhando para Câmara e Senado, nos perguntemos: quem lá podemos chamar de “reformador social”?… Uma última questão: temos bancada da Bala, da Biblia, do Boi, da Propina — por que não temos, nem que seja de longe, uma “bancada da reforma social”?…
Não da forma que temos agora, mas no período abolicionista em que Nabuco fez parte do Legislativo também havia interesses poderosos representados no Parlamento, como o dos grandes proprietários. Em 1884, quando já se divisava a abolição (aconteceria quatro anos depois), surgiu uma proposta aparentemente conciliadora. Consistia no seguinte: ok, faça-se a abolição, mas em compensação que os proprietários de escravos sejam indenizados. Muitos eram favoráveis; Nabuco, não. Reagiu indignado. Se alguém tinha direito à abolição, argumentava, eram os escravos, jamais os proprietários. “Senhores, a propriedade não tem somente direitos, tem também deveres”, dizia ele, e “as sociedades não vivem pela riqueza acumulada, vivem pelo trabalho”. Outra frase que soava para larga parte da sociedade brasileira daquele tempo como uma provocação insuportável: “Os negros nos deram um povo”.
“É notável a história desse aristocrata que conseguiu sair por algum tempo do círculo de interesses da sua classe, e a quem o movimento abolicionista deu uma clarividência assombrosa”, afirma Antônio Cândido, em ensaio (Radicalismos, 1990) no qual analisa o radicalismo de três pensadores brasileiros, Nabuco, Manoel Bomfim e Sérgio Buarque de Holanda. “Durante esse lapso de tempo [da luta do movimento abolicionista] ele enxergou além do seu tempo e teve uma noção correta da sociedade brasileira real”.
Joaquim Nabuco nasceu em 19 de agosto de 1849 e morreu em 17 de janeiro de 1910. Nunca, na história do Brasil, um representante do establishment foi tão longe em defesa de medidas radicais a favor do povo quanto ele. Nesses dias de tantas referências negativas ao parlamento federal, é um nome a ser lembrado — como inspiração e como referência histórica.