A oitava investida do Estado Islâmico por atropelamento em um ano, na Europa, deixa ao menos 13 mortos.
Luce Pereira (texto)
Arte DP sobre imagem de internet (foto)
Há dias inesquecíveis na vida de uma pessoa comum como eu, que a duras penas descobriu, desde muito cedo, o valor e a importância da simplicidade. Significa dizer que as pequenas coisas são saboreadas com mais consciência, consistência e calma, como se cada uma representasse aprendizado valioso, uma lição de agradecimento. Foi assim no dia em que estive em La Rambla ou Las Ramblas como dizem, de boca cheia, encantados turistas de primeira viagem ou aqueles já cativos da beleza e da atmosfera descontraída de Barcelona. São milhares durante todo o ano, porque a cidade tem tudo para agradar: é linda, cheia de vida, de riquezas históricas, com uma arquitetura deslumbrante, musical, romântica, excelente gastronomia, e só os abstêmios completos resistem ao “canto da sereia” catalã, na forma de convites para brindar a quase tudo. Há uma graça indisfarçável na maneira como todos, habitantes e visitantes, buscam fazer da celebração um traço da alma de Barcelona. Alma ferida, ontem, pelo terror, que além de nunca conseguir entender a necessidade de tanta leveza, ainda condena à morte quem não transforma os dias em penitência e arrependimento.
Naquele dia, era um sol de começo de outono e no famoso passeio o vaivém ruidoso demonstrava a euforia dos visitantes com a cidade. Eu iria embarcar num navio para Toulon, na França, de onde seguiria em um trem até Paris, para onde sempre volto sem qualquer explicação sobre de onde vem esse desejo de voltar. Mas lembro que a alegria se renovava nas esquinas fervilhantes e que nada permitia a aproximação de pensamentos ou sentimentos ruins, porque turista quando se identifica com certos lugares só os imagina uma espécie de ilha da fantasia a salvo das misérias humanas mais tenebrosas como é o terror. Tive vontade de abraçar o violonista solitário – que esperava, no fundo do chapéu, a recompensa pela execução de clássicos como Concierto de Aranjuez – a dançarina de flamenco, a estátua viva, a vendedora de flores, e isto sem ainda haver tomado nenhum gole de um dos bons (e a preço honesto) vinhos espanhóis. Era apenas porque pareciam tão leves os momentos vividos ali, todos acompanhados de uma sensação indescritível de segurança, coisa tão desejada no Brasil e cada vez mais semelhante àquele pote de ouro escondido atrás do arco-íris.
Quando a tragédia estampou as manchetes, ontem, quase nem podia acreditar: pelo menos 13 mortos (entre eles, seis crianças) e dezenas de feridos pela ação do motorista que jogou a van em cima da multidão de caminhantes em trânsito por Las Ramblas, atentado logo reivindicado pelo grupo terrorista Estado Islâmico. Choque.Tristeza. Revolta. Vazio. E a velha pergunta repetida desde que a Europa, o continente das artes e da beleza, transformou-se em alvo permanente de extremistas: até quando? Difícil prever, pois só em um ano foram oito atentados usando o mesmo método, atropelamentos de pedestres em vias extremamente movimentadas de grandes cidades da Espanha, da França, da Alemanha, do Reino Unido e da Suécia. A conclusão mais óbvia é de que os serviços de inteligência dos países sob ameça não conseguem ser mais eficientes do que as estratégias escolhidas pelo Estado Islâmico. Quando a segurança é aumentada em aeroportos, deixa a desejar no monitoramento dos recrutados pelo grupo para cruzar as fronteiras e por em prática o ataque utilizando veículos de grande porte como caminhões e vans.
Penso que poderia ter sido qualquer um de nós vivendo um daqueles dias felizes em Las Ramblas, mas o fato de estar a salvo não me deixa menos triste. O terror, que se alastra pelo mundo, tira das belas cidades eleitas pelos turistas seu maior atrativo, a segurança. Ao menos para nós, brasileiros, caminhar sem medo pelas ruas, a qualquer hora, sempre foi a grande graça encontrada nesses destinos. Eu pensava nisso quando o navio saiu para a Itália, a primeira parada. Mas pensava, sobretudo, no quanto havia sido bom ver Barcelona sorrindo como quem não tinha o menor medo de ser atingida naquilo que mais preza – a liberdade.