14.09

Essa é a história de uma mulher que imergiu no mundo da microcefalia para fazer a diferença.

Silvia Bessa (texto)
Arquivo pessoal (foto)

Disseram a Áurea que a maior concentração de bebês com microcefalia estaria no Hospital Altino Ventura, no Recife. Ela resolveu ir para lá como uma desconhecida. Logo percebeu que dezenas de mães sequer tinham um braço solidário para segurar suas crianças na sala de espera enquanto iam no banheiro. Na segunda visita, notou que, como as mulheres chegavam cedo para a consulta, muitas vezes não tinham tomado café da manhã. Resolveu se preparar melhor. Passou no supermercado, comprou pães, carnes e refrigerantes. Numa noite, organizou a panelada. Depois de um sono curto, enquanto o sol se espreguiçava às 5h da manhã, ligou o fogo para esquentar a comida e começou a embalar dezenas dos sanduíches que lhe acompanhariam na visita seguinte.
“Eu embrulhava um a um com papel alumínio porque ninguém merece comer frio”, justificou. Cinquenta, sessenta e mais lanches. A demanda só crescia, assim como o número de casos que surgiam desde setembro de 2015, quando o surto foi detectado. Áurea fazia as primeiras amizades até ser a “queridinha”, “a fadinha”, a madrinha. Com pouco, via-se dando voltas pela cidade em função de caronas a mulheres e meninos percorrendo trajetos que nada tinha a ver com a sua rota. “Fui me apegando mais”. Nos cantos da residência de Áurea Negromonte Arraes – mulher da classe média alta do Recife – começaram a se amontoar fraldas descartáveis, leites e doações diversas. Até hoje. Quando o estoque está baixo, não se intimida. “Ligo na maior cara lisa para meus amigos”.
O marido, Zé Arraes, estranhou logo no início. “Por que o cartão tem tanta conta de farmácia este mês?”, perguntou mais ou menos desse jeito certa vez. Áurea respondeu: “Porque tem meus meninos”. Costuma dizer que tem dois filhos de sangue e 420 filhos raros. Segundo ela, o marido acabou incorporando a ideia de que a feira de supermercado da família, que conta com os filhos Mariana (21 anos) e Guilherme (13 anos), sempre seria acrescida de algo e a fatura do cartão de crédito teria o valor de alguns remédios de apadrinhados.
Áurea era uma voluntária esporádica da Amar (Aliança de Mães e Famílias Raras). Agora dedica-se em tempo integral. “Se me disser que não vou para a Amar, caio dura”, brinca. Hoje, vive a vida das mães com as mães – na Amar, nos congressos, no rojão da rotina diária ou numa manhã de sol na piscina de seu apartamento. Ajuda a organizar encontroscom advogados, briga por tratamentos de saúde, faz spa feminino fazendo massagens nos pés alheios e nos últimos tempos ocupa-se em alavancar o projeto Mães Produtivas, no qual ensina as mães a fazerem doces e bijuterias e compra material para produção de polvos de croché (à venda em um quiosque no Shopping Recife).
Entre muitas mães de bebês com microcefalia, há quem creia que Áurea é um tanto anjo da guarda que circula – falante – por aí. Outras, dão para ela títulos carinhosos, como “fadinha”. Tem as que a consideram uma madrinha da coletividade, aquela que cuida, socorre e dá carinho quando tem menino doente.
Vanessa dos Santos, mãe de Enzo, que nasceu com microcefalia, resolveu dar a Áurea o prazer de batizar de fato seu filho. Será no próximo domingo. Enuanto tratava de Enzo, Vanessa engravidou de novo. Áurea recomendou: “Quando você sentir dor, me avise”. Às 3h da madrugada, sob chuva intensa, Áurea pegou um táxi e pediu que ele estacionasse na BR, às margens da humilde comunidade do Detran. Colocou a grávida no carro e assistiu ao parto.
Áurea participa de nascimentos, festinhas de aniversários e esteve em hora de morte. Quando Benjamin faleceu no Hospital da Restauração há seis meses foi ela quem entrou primeiro para reconhecer o corpo. Foi ela quem transportou a mãe, Bruna, até a cidade Caruaru para o enterro naquele dia triste. “Sou mole que só, mas junto dessas mulheres sou mais forte que tudo”, disse-me.
Dois anos depois do surto de microcefalia, sabendo e acompanhando a dedicação de Áurea, posso dizer: tem muita gente rara que faz parte desta história.