23.09

 

Redes sociais reagem com veemência contra a tentativa de transformar homossexualidade em doença.

Luce Pereira (texto)
Arte DP (imagem)

O Brasil se transformou em um país que deixa de cuidar das verdadeiras anomalias para insistir em acabar com as que não são. Construir uma sociedade de heterossexuais, por exemplo, querendo que mais de 20 milhões de pessoas “se curem” de sentir atração pelo mesmo sexo, é, antes de mais nada, revelador de uma brutal falta de conhecimento sobre o assunto, sobretudo em relação àquilo que a psicologia diz, isto desde a época na qual o pai da psicanálise, Sigmund Freud, tornou-se voz das mais ouvidas e respeitadas, pelo pioneirismo nos estudos acerca da sexualidade humana. Era 19 de abril de 1935, o cientista já estava com 80 anos e a quatro de morrer quando escreveu à mãe que lhe pedira para apontar uma solução, um tratamento, capaz de promover a “cura” do filho com clara inclinação à homossexualidade. Embora o teor da carta possa desagradar imensamente a políticos e grupos religiosos que hoje tentam manipular a opinião pública pregando a existência de tal possibilidade, Freud foi objetivo: “A homossexualidade não pode ser considerada uma doença. Nós a consideramos uma variante da função sexual”. E para não deixar dúvida sobre a verdade do que dizia, sugeriu à senhora ler os livros do psicólogo britânico (Henri) Haveloch Ellis.
Tal como na época em que Sigmund fazia sucesso atendendo na Berggasse 19, 1090 Viena (Áustria), endereço transformado em museu, persiste a ideia de que a psicologia não consegue além de deixar o indivíduo confortável quanto à sua condição, livrando-o do peso de cobranças sociais para as quais ele não pode dar a resposta desejada pelos opressores. Na carta à senhora, Freud disse que era “uma grande injustiça e também uma crueldade perseguir a homossexualidade como se esta fosse um delito”, sem inclusive deixar de lembrar àquela mãe a existência, no passado e no presente, de nomes como Leonardo Da Vinci, Michelangelo e Platão, cuja preferência pelo mesmo sexo não os impedia serem homens extremamente merecedores do respeito e da admiração do mundo. Em resumo, apenas se o tal filho estivesse descontente com conflitos produzidos pela suposta condição, poderia ser paciente e sair do consultório fortalecido para lidar bem com as próprias emoções, fossem quais fossem.
Assim, Freud está para os grupos religiosos interessados em difundir a falsa ideia da “cura gay” como a era do iluminismo está para os absolutistas, interessados em manter longe do conhecimento quem poderia lhes ser útil vivendo sob as “trevas”. Significa que “queiram ou não queiram os juízes”, segundo diz o famoso frevo, a homossexualidade vai continuar existindo como um viés da sexualidade humana e não como mal a ser corrigido. Nesta semana, as redes sociais responderam com força à tentativa de dar ao assunto evidência desnecessária, afinal, não são os homossexuais os responsáveis pelo caos em que o Brasil mergulhou. Parece, então, um esforço orquestrado no sentido de desviar o debate sobre o que realmente importa. “Não há cura para o que não é doença”, bradaram perfis do Facebook e do Instagram, enchendo as fotos dos donos de um colorido que não combina em nada com a crônica diária de verdadeiras vergonhas nacionais, capazes de ora transformar o país em referência de corrupção crônica, ora em piada. Está na hora, isto sim, de voltar a falar sério.