26.09

Fato histórico serve para mostrar como reformas sociais no Brasil são lentas e incompletas.

Vandeck Santiago (texto)
TV Cultura (imagem)

Aparticipação do cantor Carlinhos Brown no programa The Voice Brasil, da TV Globo, quarta-feira (20), chamou atenção por um motivo extramusical. Ao falar sobre a participante Isabel Antonio, uma refugiada do Congo, de 16 anos, ele fez uma relação com a nossa pirncesa Isabel, que em 13 de maio de 1888 assinou a chamada Lei Áurea, abolindo a escravidão no Brasil. Disse o cantor: “Foi uma princesa chamada Isabel que trouxe para nós uma liberdade exclusiva. Uma mulher sensível, de pele clara, que libertou os negros da escravidão. Eles que vinham do Congo, de Angola, foram pra Bahia, foram para Recife e também para o Rio”. A frase, como seria de se esperar, provocou polêmica.
Trata-se de uma antiga questão — o papel da princesa Isabel no fim da escravidão no Brasil —, que remete a um dos períodos que explicam como poucos o comportamento das elites no Brasil e o difícil caminhar da evolução social do país. Quem deseja entender o Brasil precisa conhecer a luta pela Abolição.
Um exemplo emblemático, pouco difundido: em 1885 foi aprovada a Lei dos Sexagenários, determinando que os escravos a partir de 60 anos estavam livres. Ora, primeiro vejam que chegar aos 60 anos, mesmo nos dias de hoje, não é algo fácil para toda a população — imaginemos então para um escravo, no século 19… E mesmo assim, na lei estava escrito que os libertos ficavam “obrigados, a título de indenização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de três anos”. Ou seja: os escravos pagaram indenização aos seus senhores, depois de uma vida inteira na escravidão…
Outro ponto que merece destaque, e que encontra paralelo ao longo de nossa história, é a lentidão com que as reformas sociais são implantadas. A primeira medida oficial contra a escravidão foi em 1850, com a lei que extinguia o tráfico de escravos para o o Brasil. Demorou quase quatro décadas até que a abolição fosse decretada.
Nessa longa luta as forças que digladiavam em torno da questão formaram um tripé que podemos ver reproduzido também em outras épocas de nossa história posterior (feitas as devidas adaptações, claro). Usando explicação sucinta da historiadora Mary del Priore, o tripé constituía-se assim:
1) os emancipacionistas, que era a turma favorável ao fim da escravidão, mas não abruptamente, e sim de uma forma lenta e gradual — no final do século, por exemplo…;
2) os abolicionistas, corrente que exigia Abolição Já, sem panos quentes. O nome de maior projeção aí foi o de Joaquim Nabuco, um liberal enfurecido naqueles dias do abolicionismo. No movimento destacaram-se também lideranças negras, como André Rebouças e José do Patrocínio;
3) os escravistas, contrários ao fim do sistema de escravidão. Caso a abolição se tornasse inevitável, então que os proprietários fossem indenizados por isso. Havia nomes célebres entre os defensores do sistema, como o escritor José Alencar, para quem os escravos brasileiros viviam melhor do que operários europeus, e os abolicionistas não passavam de “apóstolos da anarquia”.
A luta entre esse tripé deu a tônica no processo social mais importante da segunda metade do século 19 no Brasil. Evidente que, como fez Carlinhos Brown, atribuir à princesa Isabel a “liberdade exclusiva” dos escravos é um engano grosseiro. Mas hoje considera-se que o desfecho desse longo processo teve a ação reformista de setores da elite e de ativistas político-sociais (que formavam a corrente abolicionista) e a rebeldia dos escravos.
E chegamos, enfim, a 1888. É comum dizer-se que àquela altura o número de escravos no país já estava bem reduzido, o que favorecera a abolição. É certo que o total não se comparava ao de décadas anteriores, mas estava longe de ser insignificante. Uma eventual indenização aos seus donos custaria no mínimo 210 milhões de contos de réis — quantia superior ao orçamento geral do Império, que era de 165 milhões de contos de réis, conforme se vê em Uma breve história do Brasil, de Mary del Priore e Renato Venâncio.
A Lei Áurea determinou a abolição sem nenhuma indenização. Mas a lei não veio acompanhada de outras medidas, defendidas pelos abolicionistas, em particular por Nabuco: terra para os libertos, educação (formação, capacitação profissional), políticas públicas para absorver a legião de novos cidadãos livres. Mas, do outro lado, causou profundo descontentamento entre os proprietários, que viram a medida como um “confisco de propriedade”. No ano seguinte eles engrossaram as fileiras dos republicanos, na derrubada da Monarquia para a instauração da República. Tudo isso aconteceu há 130 anos. Mas os seus efeitos continuam presentes, como a frase do Carlinhos Brown nos faz recordar.